Na escola da infância, há espaços que transbordam sentidos — não apenas pelo que neles se faz, mas pela forma como se está. A roda é um desses lugares. Nela, mais do que organizar corpos em círculo, organizam-se vínculos, palavras, silêncios e sonhos. A roda não é mero dispositivo metodológico; ela é símbolo e prática de uma educação que deseja ser presença, escuta e criação. Quando olhada com profundidade, a roda é uma espécie de altar da convivência — onde o tempo se alarga, a escuta se refina e a imaginação encontra terreno fértil para florescer.
Este texto propõe uma travessia: pensar a roda como tempo de escuta e imaginação, à luz de autores como Vygotsky, Walter Benjamin, Gaston Bachelard e contemporâneos que dialogam com a pedagogia da infância. Mais que fundamentar práticas, desejamos sustentar a sensibilidade do educador que, diante do círculo vivo da infância, se pergunta não apenas o que ensinar, mas como escutar o que se apresenta e como cuidar da potência criadora que brota nos encontros.
A roda como lugar de presença e relação
Na educação infantil, a roda é, muitas vezes, o primeiro espaço formalizado de encontro coletivo. Sentados em círculo, adultos e crianças olham-se nos olhos, compartilham gestos, escutam histórias, cantigas, falas e risos. A roda convida à horizontalidade, ao pertencimento, à escuta mútua. Nela, não há frente nem fundo — há um centro simbólico onde tudo pode acontecer.
Mais que um formato espacial, a roda é uma metáfora de presença. Como nos lembra o educador Paulo Fochi (2015), a organização da roda exige mais do que dispor cadeiras em círculo: exige uma disposição afetiva e ética para o encontro, uma postura pedagógica que se interessa verdadeiramente pelo que cada criança traz como contribuição ao coletivo.
É nesse território circular que a escuta se torna gesto pedagógico. A escuta não apenas como ação técnica ou etapa do planejamento, mas como forma de estar no mundo com o outro — aberta ao não previsto, ao que escapa, ao que pulsa.
Escuta sensível: entre o dito e o não dito
Escutar crianças exige mais do que ouvidos atentos. Exige um corpo presente, olhos disponíveis, alma desarmada. A escuta sensível é aquela que se deixa afetar, que capta o que se diz e também o que silencia, que valoriza os balbucios, os risos, os gestos, os desenhos e as pausas.
A escuta, nessa perspectiva, torna-se uma forma de cuidado. Cuidar é escutar com interesse genuíno. É sustentar o tempo da criança sem apressá-la. É reconhecer que, ao se expressar, ela não apenas comunica: ela inventa-se, ela cria mundo.
Walter Benjamin (1936), em seu ensaio “O Narrador”, alerta para a perda da experiência na modernidade e para a escassez de espaços onde a narração ainda habita. Para ele, escutar uma história — ou contá-la — é uma forma profunda de transmissão de experiências. Na roda, quando uma criança narra algo (ainda que por meio do desenho ou do gesto), ela atualiza essa tradição ancestral: a de que narrar é construir sentido coletivo, é entrelaçar o vivido e o imaginado.
Assim, escutar crianças é reconhecer que elas são narradoras legítimas de suas experiências. Escutar suas falas, suas invenções, suas perguntas desconcertantes é um gesto de reconhecimento ético e epistemológico. Como diz Adriana Friedmann (2011), é preciso compreender a criança como sujeito criador de cultura, não apenas como alguém que absorve ou imita o mundo adulto.
A imaginação como linguagem da infância
No coração da roda pulsa outro elemento essencial: a imaginação. É ali, no espaço entre a palavra e o gesto, que surgem imagens, figuras, personagens e mundos possíveis. Quando se abre espaço para a imaginação, abre-se também uma escuta que não exige coerência lógica, mas sensibilidade para o simbólico.
Vygotsky, em sua obra Imaginação e Criação na Infância (1930), defende que a imaginação é um componente essencial do desenvolvimento humano. Para ele, o pensamento criador da criança não é um simples devaneio, mas uma forma ativa de reorganizar o real. A criança imagina com o que vive, com o que sente, com o que observa e ressignifica.
Na roda, portanto, a imaginação não é distração — é matéria-prima da aprendizagem. Contar histórias, escutar invenções infantis, criar coletivamente personagens ou cenários são formas de fortalecer a linguagem simbólica da infância e promover aprendizagens complexas que envolvem o pensamento, o afeto e a linguagem.
Gaston Bachelard, em A Poética do Espaço (1957), nos ensina que a imaginação é uma força viva que dá forma aos nossos afetos. Ele afirma: “A imaginação é fundamentalmente aberta, é a realidade do possível.” Na roda, cada história contada ou inventada é um convite a esse possível — um abrir-se ao que não se conhece, ao que não se controla, ao que escapa das expectativas curriculares.
A roda como território de criação
Mais do que espaço de escuta, a roda é também um território de criação coletiva. Quando crianças e educadores compartilham suas vozes, seus gestos, suas narrativas, constroem juntos um campo simbólico potente, onde o saber se faz na relação.
Cynthia Farina (2020), ao falar sobre os tempos e espaços na educação infantil, destaca a importância de “tempos lentos” — aqueles em que a criança pode se demorar, aprofundar-se, repetir, inventar. A roda, quando respeita esse tempo ampliado, torna-se terreno fértil para a criação: ali se canta, se experimenta o som das palavras, se dança com as imagens, se reinventa o cotidiano.
Na roda, as palavras ganham corpo. As histórias viram brincadeira. As perguntas se tornam sementes para projetos. É ali que se pode transformar um simples “como foi o fim de semana?” em um convite à ficção, à poesia, ao delírio inventivo. “Meu fim de semana foi com dragões invisíveis!” — e a roda acolhe.
A criação, nesse espaço, não exige resultado. Exige presença. A criança não precisa “provar” o que imagina. Ela precisa sentir que sua imaginação é bem-vinda. E o educador, por sua vez, precisa sustentar esse território com o encantamento de quem se deixa surpreender.
O papel do educador na roda: entre mediação e afeto
O educador, na roda, não é condutor de uma atividade. É guardião do vínculo, fiandeiro do tempo, mediador da escuta e acendedor de imaginários. Sua presença é fundamental — não para centralizar, mas para garantir que o espaço seja seguro, afetivo, acolhedor e criativo.
É ele quem regula o tempo, que valoriza as falas, que legitima as criações, que escuta com interesse genuíno, que sustenta o silêncio quando necessário. É ele quem reconhece que cada gesto da criança — por mais simples que pareça — é uma forma de linguagem e expressão.
Isso exige uma formação sensível e reflexiva. Como lembra Sandra Eckschmidt (2019), é necessário que o educador se reconheça como pesquisador de si e da infância, alguém que observa, escuta, documenta e, sobretudo, se deixa transformar pelos encontros cotidianos.
Ser pesquisador de infâncias não é, antes de tudo, alguém que produz dados, mas alguém que cultiva olhares. É aquele que se aproxima das crianças com respeito e curiosidade, que se propõe a observar não para controlar, mas para compreender os modos como elas habitam o mundo. É um educador que se deixa interrogar pelas expressões infantis — pelos gestos, silêncios, perguntas, brincadeiras e invenções — e que reconhece nelas formas legítimas de pensamento e cultura.
Ser pesquisador de infâncias é adotar uma postura ética e estética de escuta, é perceber que há saber nos rastros do brincar, nos desenhos inacabados, nas falas que escapam da lógica adulta. É quem não se contenta com o óbvio, quem não reduz a infância a uma etapa do desenvolvimento, mas a enxerga como território de autoria, de criação e de potência.
Como nos lembra Sandra Eckschmidt, o educador pesquisador é aquele que se implica no que vê. Ele não observa de fora, mas se reconhece parte do processo. Pesquisa com, e não sobre. E assim, na escuta atenta das infâncias, vai também se reinventando como sujeito que educa e que aprende — todos os dias.
Documentar a roda: registrar encantos, visibilizar escutas
Documentar as experiências da roda é uma forma de valorizá-las. Não se trata de anotar tudo o que foi dito, mas de dar visibilidade aos sentidos que emergem, às falas potentes, aos vínculos que se tecem, às aprendizagens que escapam dos planejamentos.
A documentação pedagógica, nesse contexto, é um ato político e poético. Ao registrar a roda, o educador reconhece que ali há saber. Que ali há pensamento infantil em movimento. Que ali há cultura sendo construída.
Além disso, a documentação permite que os sentidos da roda ultrapassem o momento vivido e cheguem às famílias, às equipes pedagógicas, aos próprios educadores em formação. Ela amplia a escuta. E quando essa escuta é compartilhada, fortalece-se uma rede viva de cuidados, olhares e aprendizagens.
Conclusão: entre o tempo e o encantamento
A roda é uma experiência que exige tempo. Tempo para o corpo sentar, para o silêncio acontecer, para a palavra surgir. Exige um tempo outro — diferente do tempo apressado da lógica escolar tradicional. É um tempo de encantamento.
Encantar-se, como lembra a própria origem da palavra, é deixar-se tocar pela canção — por aquilo que ecoa, que vibra, que reverbera no sensível. A roda, quando verdadeira, é uma canção coletiva. Um momento em que as vozes se entrelaçam, o cotidiano se reinventa, e a infância encontra um território legítimo de expressão.
Educar, nesse contexto, é menos ensinar conteúdos e mais cultivar encontros. É menos controlar falas e mais acolher vozes. É menos esperar respostas certas e mais habitar perguntas.
Roda de encantos não é só o nome de uma prática. É um convite ético e estético à presença.
É o reconhecimento de que, no meio do círculo, mora a possibilidade de escutar o mundo com ouvidos mais abertos, e de imaginar futuros com olhos de infância.
📚 Referências
- Benjamin, Walter. O narrador: Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985.
- Bachelard, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
- Vygotsky, Lev. Imaginação e criação na infância. São Paulo: Ática, 2009.
- Fochi, Paulo. A escuta como postura ético-estética na educação infantil. Cadernos da Formação, 2015.
- Friedmann, Adriana. A vez e a voz das crianças: escutas antropológicas e poéticas. São Paulo: Panda Books, 2011.
- Eckschmidt, Sandra. O educador pesquisador de infâncias. Porto Alegre: Penso, 2019.
- Farina, Cynthia. Tempos e espaços na educação infantil: entre experiências e saberes. São Paulo: Autêntica, 2020.