Era uma vez um quintal de possibilidades. Nele, o tempo parecia alargar, os objetos ganhavam alma e as crianças, em seu brincar livre, contavam o mundo com o corpo todo. Em outro canto, havia uma educadora atenta, com o olhar que não prende, mas acompanha; com a escuta que não interrompe, mas acolhe. Ela sabia: há horas em que o brincar pede vento, outras em que pede mãos. E nesse entremeio nasce o encantamento pedagógico – a dança entre deixar ser e estar junto.
O brincar como direito e linguagem da infância
Brincar não é um passatempo, tampouco um intervalo entre “atividades sérias”. Como afirma a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), é um dos direitos de aprendizagem e desenvolvimento da criança na Educação Infantil. Brincar é, também, forma de expressão, de pensamento e de criação. Nele, a criança reelabora o vivido, experimenta papéis, narra afetos, cria mundos.
A pesquisadora Luciana Ostetto defende que o brincar é uma linguagem legítima da infância, e não apenas uma preparação para algo maior. “A brincadeira é o que há de mais sério para a criança pequena”, afirma. Ela nos convida a perceber o valor da espontaneidade, da escolha, da autoria infantil — elementos essenciais do brincar livre.
Brincar livre: o sopro do vento
Brincar livre é aquele que nasce da criança, de seus interesses, afetos e sentidos. Pode surgir ao virar de uma pedra, no redemoinho das folhas, na repetição de um movimento que parece simples aos olhos adultos, mas que carrega uma profunda investigação sensório-motora, poética ou simbólica.
Quando a educadora valoriza o brincar livre, ela reconhece a potência criadora da criança. Ao não interferir, permite que o tempo se dilate, que o tédio seja atravessado, que o conflito se resolva entre pares — e que a autonomia ganhe forma.
Segundo Sonia Kramer, o tempo do brincar precisa ser protegido da pressa institucional. Quando a criança encontra espaço, materiais abertos e a liberdade de inventar, ela se expressa em sua totalidade — corpo, mente, emoção e imaginação.
O professor no brincar livre: presença que sustenta sem conduzir
No território do brincar livre, o professor não se retira — ele se reinventa. É presença que observa com escuta, que acolhe com cuidado, que sustenta com sensibilidade. Quando a criança brinca livremente, ela traça mapas invisíveis de si e do mundo, e o educador, como um cartógrafo afetivo, acompanha esses percursos com olhos atentos e coração presente.
A educadora Luciana Ostetto lembra que o brincar é o modo natural da criança ser e estar no mundo. Por isso, o papel do professor não é interromper com direções, mas manter-se em prontidão afetiva, garantindo que o ambiente seja fértil e seguro para o livre criar.
Adriana Friedmann, ao tratar da escuta das infâncias, nos convida a escutar com o corpo inteiro: não apenas com os ouvidos, mas com os olhos, a pele, a respiração. Observar a criança brincando é um gesto pedagógico essencial. O professor atento percebe:
- Os interesses que movem cada criança;
- Os afetos que circulam no grupo;
- As tensões e descobertas que emergem espontaneamente.
Mas esse olhar não é passivo. O educador também cuida do tempo e do espaço — elementos centrais para a qualidade do brincar. Ambientes organizados com materiais abertos, elementos naturais, objetos do cotidiano, tecidos e blocos convidam à invenção. E o tempo, quando desacelerado, permite que o brincar se aprofunde.
Estudiosos reforçam que o professor da infância não pode ser espectador ausente, nem diretor de cena. Ele é mediador ético e afetivo, alguém que se aproxima quando necessário, protege quando há exclusão, propõe quando percebe esvaziamento, mas sempre com delicadeza.
Intervir no brincar livre não é conduzir, é ampliar com afeto. Pode ser com uma pergunta: “Você quer ajuda?”; com um convite: “Posso entrar na sua história?”; ou com um gesto de partilha: “Que ideia linda você teve!”.
Registrar essas experiências — com palavras, imagens ou desenhos — é outro papel fundamental. A documentação pedagógica, como nos lembra Friedmann, torna visível o que, de outro modo, seria esquecido. É memória sensível do brincar.
Como diz Marina Colasanti, “a criança precisa da mão que não prende, mas sustenta, e do olhar que não pesa, mas ilumina.” No brincar livre, o professor é esse olhar e essa mão.
Propor brincadeiras: o convite da mão
Há momentos em que o adulto pode (e deve) intervir. Não como quem rouba a cena, mas como quem convida, oferece, amplia. Propor brincadeiras é um gesto de mediação: quando bem intencionado, afetuoso e atento, pode abrir horizontes que a criança, sozinha, talvez não explorasse.
Imagine uma roda em que a educadora propõe um jogo rítmico, cantado, ancestral. Ao repetir versos e gestos com as crianças, ela as introduz em um repertório cultural coletivo, compartilha a alegria do corpo em grupo, cria vínculos. Ou ainda quando, ao perceber certa tensão no grupo, sugere uma brincadeira cooperativa que convida ao encontro. Nestes casos, a mediação é presença significativa.
O cuidado está em não substituir o brincar da criança pela condução do adulto, mas em oferecer caminhos que dialoguem com seus desejos e curiosidades.
Entre deixar e guiar: como saber o momento?
Essa pergunta habita o coração de muitas educadoras: “Quando deixar a criança brincar sozinha? Quando intervir?”. A resposta não vem de fórmulas, mas de um corpo que escuta, de uma pedagogia sensível ao tempo, ao espaço e às necessidades da criança.
Critérios que ajudam:
- Observação atenta: A criança está envolvida? Há cooperação ou exclusão? A brincadeira se renova ou se esvazia?
- Escuta não-verbal: O que dizem os gestos, os olhares, os silêncios?
- Conhecimento do grupo: Que tipo de apoio cada criança necessita para florescer?
- Autorreflexão constante: Estou ampliando ou sufocando? Estou ouvindo mais do que falando?
A intencionalidade pedagógica no brincar
Valorizar o brincar não é abdicar da intencionalidade pedagógica. Pelo contrário: é reconhecer que a brincadeira é, por si só, território de aprendizagem potente. O educador pode — e deve — planejar tempos e espaços para o brincar, oferecer contextos ricos, propor experiências abertas que ampliem os campos de experiências da BNCC.
Como destaca Kramer (2007), o brincar é um direito, mas também é uma escolha pedagógica: uma forma de ensinar que respeita o ser da criança, que educa com corpo, imaginação e escuta.
Orientações para a prática pedagógica
O educador como cuidador do tempo, do espaço e da experiência de brincar
Na escola da infância, o papel do educador ultrapassa a transmissão de conteúdos: ele é aquele que cuida dos tempos, desenha os espaços e escolhe, com intenção, os materiais que favorecem experiências significativas. Organizar o ambiente pedagógico não é apenas distribuir móveis ou dispor brinquedos em prateleiras; é criar um cenário que acolha o corpo, desperte a imaginação e convide ao brincar como linguagem de expressão e investigação do mundo.
Inspirados por autores como Loris Malaguzzi e a abordagem de Reggio Emilia, compreendemos que o espaço é o “terceiro educador” — ao lado do adulto e da criança —, sendo capaz de comunicar valores, incentivar relações e tornar visível a pedagogia do cotidiano. Cada canto, cada material oferecido, cada tempo permitido para explorar e retornar ao que encanta diz à criança: “seu brincar é importante”.
Assim, o educador precisa olhar com atenção e escuta para o tempo do brincar, evitando fragmentações e interrupções desnecessárias. O tempo deve ser alargado, fluido, capaz de sustentar mergulhos profundos nas brincadeiras, nos silêncios, nos encantamentos. Organizar com intenção não significa controlar, mas sim preparar com sensibilidade um ambiente que sustente o livre brincar, ao mesmo tempo em que se conecta com os projetos de investigação, com os interesses das crianças e com os valores que orientam a prática educativa.
Nesse contexto, a intencionalidade pedagógica não se opõe à liberdade do brincar: ela a sustenta. O educador age como quem semeia, acompanha e escuta — intervindo com delicadeza, provocando com beleza e oferecendo materiais que convidem ao fazer, ao refazer, ao imaginar e narrar.
Brincar guiado pela escuta: o educador como presença que acompanha
Guiar a brincadeira não é conduzir com rigidez, nem ditar caminhos prontos — é estar junto, em presença viva, com o coração atento ao que pulsa no brincar das crianças. Quando o educador escuta com profundidade, ele se torna capaz de reconhecer as perguntas silenciosas que emergem dos gestos, dos olhares e das invenções lúdicas. Escutar, aqui, é uma forma de respeitar o pensamento infantil em sua forma mais livre e criativa.
Ao invés de interromper para ensinar, o educador observa para compreender. Ele se aproxima como quem quer descobrir junto, como quem sabe que toda brincadeira carrega uma hipótese, uma vontade de saber mais, uma tentativa de narrar o mundo à sua maneira. Essa escuta ativa permite acolher as curiosidades infantis como motor da ação pedagógica, transformando o momento do brincar em um campo fértil de pesquisa e criação.
Guiar, então, é abrir espaço: oferecer materiais que dialoguem com os interesses da criança, fazer perguntas que provoquem novos sentidos, nomear descobertas com afeto, registrar com sensibilidade o que se revela nos jogos simbólicos e nas construções improvisadas. O educador que escuta com o corpo todo sabe que o brincar é um território sagrado, e que sua presença deve ser leve, atenta e inspiradora.
🌿 Crie rotinas com tempo real para o brincar livre todos os dias.
- 🧺 Disponibilize materiais abertos e naturais, que não limitem a criatividade.
- 🪟 Mantenha o ambiente organizado, acessível e inspirador.
- 🤲 Proponha brincadeiras que dialoguem com os interesses do grupo.
- 🗣️ Cultive uma escuta ativa: nomeie emoções, legitime invenções.
- 🧾 Documente: registre gestos, falas, ideias — torne visível o brincar.
- 💬 Envolva as famílias: compartilhe com elas a importância do brincar.
- 👣 Esteja presente, mas confie nos caminhos que a criança traça.
🌿 Organização da Sala-Referência: escutar com o espaço
A sala-referência deve ser mais do que um local de permanência: ela precisa escutar as crianças em seus desejos de brincar, criar e pertencer. O ambiente, como ensina Loris Malaguzzi, “fala com as crianças e com os adultos”; por isso, cada canto e cada objeto comunicam intenções.
1. 🌞 Ambientes organizados em ateliês ou cantos de experiência
Divida o espaço em áreas fixas e móveis, que possam ser reorganizadas conforme os projetos, tempos e interesses das crianças:
- Canto do faz de conta: com tecidos, objetos do cotidiano, miniaturas, fantasias simples e elementos simbólicos. Esse espaço favorece a narrativa, a imaginação e o jogo simbólico.
- Canto da construção: com blocos de madeira, peças soltas, encaixes, caixas, bambus, prendedores, rolos. Valoriza a criação e o pensamento estruturante.
- Canto da leitura e escuta silenciosa: almofadas, livros acessíveis, fones com áudios ou músicas suaves, cestos com objetos sensoriais. Um convite ao recolhimento e à contemplação.
- Ateliê de artes e investigação: tintas, argila, papéis, elementos naturais, lupas, espelhos, tecidos e materiais de largo alcance. Lugar de criação e pesquisa.
- Canto da escuta e da palavra: uma “mesa de encontros” onde as crianças possam conversar, registrar, desenhar ou escrever suas descobertas. Pode conter também um gravador ou tablet para registros orais.
💡 Esses cantos devem ser visíveis, acessíveis e organizados com beleza e simplicidade. A estética comunica cuidado e valor.
2. 🌬️ Organização fluida e aconchegante
- Use móveis baixos, cestos de vime, caixas organizadoras e materiais naturais para facilitar o acesso e o cuidado.
- Crie zonas de silêncio e concentração ao lado de áreas de movimento livre, permitindo escolhas e respeitando diferentes tempos de estar.
- Evite excesso visual ou ruído. Deixe espaço livre no chão para o brincar espontâneo acontecer.
3. ✨ Elementos que favorecem a escuta
- Espelhos em tamanho infantil: para que as crianças se vejam, observem gestos, explorem o corpo.
- Registros visíveis: fotos, desenhos, frases das crianças, expostos na altura do olhar delas.
- Materiais abertos (largo alcance): objetos que podem se tornar qualquer coisa (rolhas, tecidos, galhos, tampas), favorecendo a escuta ativa da imaginação.
- Ritmos suaves e previsíveis: para que a criança sinta confiança para explorar sem pressa.
🌻 Espaço Externo: natureza, corpo e liberdade
O espaço externo é extensão viva da sala, onde a escuta se amplia para o vento, os cheiros, os insetos e os silêncios. Um ambiente externo bem pensado apoia o brincar livre e a relação sensível com o mundo.
1. 🌲 Elementos da natureza ao alcance das mãos
- Jardins com ervas, flores, árvores frutíferas.
- Canteiros e hortas onde as crianças possam plantar, regar e colher.
- Espreguiçadeiras, redes ou bancos de madeira para descansar ou observar.
2. 🪵 Materiais de exploração e invenção
- Cestos com pedras, conchas, folhas secas, sementes, pedaços de madeira.
- Areia, água, barro: para criar, modelar, experimentar com o corpo todo.
- Espaço para cavar, empilhar, correr, equilibrar-se, esconder-se.
3. 🌀 Espaços de movimento e sossego
- Percursos com diferentes texturas (grama, areia, pedra, madeira).
- Cantinhos de sombra e recolhimento com tecidos ou esteiras.
- Riachos artificiais ou bacias com água para experiências sensoriais.
🌺 Intencionalidade e escuta nos ambientes
Organizar o espaço com intencionalidade não é conduzir o brincar, mas escutar com os olhos e com as mãos. É propor sem prender, provocar sem dirigir. O educador que cuida do ambiente prepara um campo fértil onde a curiosidade pode germinar. “Os espaços devem dizer à criança: você é capaz, você pode explorar, criar, escolher e voltar. Tudo aqui é para você.”
Conclusão: o educador como vento e chão
Brincar é vento que sopra onde quer. Mas também é raiz que se firma quando encontra solo fértil. A educadora é, portanto, esse solo e esse sopro. Às vezes, é presença silenciosa que dá segurança para a criança voar; outras, é convite carinhoso que aponta caminhos.
Como escreveu Manoel de Barros, “é preciso transver o mundo”. No brincar, transver é deixar-se tocar pelo que parece pequeno, mas carrega grandeza. É saber que, entre o sopro do vento e o convite da mão, mora a poética do educar.