O olhar sensível como princípio
A infância é um tempo de maravilhamento. Nada é pequeno quando visto pelos olhos de uma criança: uma folha seca pode ser nave, o céu azul vira mar, uma sombra na parede parece bicho encantado. Tudo é possibilidade. Nesse modo ampliado de viver o mundo, a arte não é algo externo, mas uma linguagem nativa da criança. Apreciar uma obra é, então, muito mais do que compreender — é se deixar tocar, é escutar com os olhos, é permitir que a imagem faça ninho dentro de si.
Quando falamos em apreciação das artes visuais na Educação Infantil, não estamos tratando apenas de um conteúdo artístico a ser ensinado, mas de um modo de educar os sentidos, de formar um olhar curioso, ético e sensível para o mundo. É também reconhecer que a arte não começa quando pegamos um pincel, mas quando olhamos demoradamente uma cor, uma linha, uma textura — e deixamos que algo se mova dentro de nós.
A infância como tempo estético
Segundo o educador Jorge Larrosa, a experiência estética está relacionada ao tempo que nos atravessa, ao acontecimento do sensível. A criança pequena vive mergulhada nessa experiência: ela se espanta, demora-se, repete gestos, toca o que vê. Vygotsky já apontava para a importância da emoção no desenvolvimento da linguagem e do pensamento. Assim, ao propor momentos de apreciação artística, o educador oferece à criança a chance de experimentar o mundo em profundidade — não para que ela explique, mas para que sinta, invente, reinvente.
A arte, nesse contexto, não se limita à fruição visual. Ela envolve o corpo, o tempo, a memória. E as crianças pequenas, por sua natureza expressiva, já são artistas de si mesmas. Basta observar uma criança diante de uma poça d’água ou rabiscando com o dedo em uma janela embaçada para compreender que o gesto artístico é anterior à técnica: é poético por natureza.
O que significa apreciar?
Apreciar é diferente de consumir imagens. Em tempos de velocidade e dispersão, ensinar as crianças a olhar com atenção é um ato pedagógico e político. Apreciar é dar tempo para o olhar pousar, é permitir que o corpo se acomode, que as perguntas venham sem pressa. Trata-se de desenvolver um olhar que vê, que sente, que se relaciona — não apenas um olhar que identifica ou reconhece.
Na prática, a apreciação artística com crianças pequenas não exige grandes explicações. Exige presença. A obra fala — e as crianças escutam com o corpo todo. A educadora pode mediar esse encontro com delicadeza, oferecendo perguntas abertas:
- O que você vê?
- Que parte dessa imagem te chamou mais atenção?
- Essa obra te lembra alguma coisa?
- Que som ela faria se pudesse cantar?
Essas perguntas não buscam respostas corretas. São convites ao diálogo, à imaginação, à construção compartilhada de sentidos.
O papel do educador como mediador poético
A educadora é ponte. Sua escuta, seu olhar atento, sua disposição a ser surpreendida são os principais instrumentos para que a apreciação aconteça de maneira viva e significativa. Como lembra Madalena Freire, escutar é um ato pedagógico e afetivo. Não basta perguntar — é preciso se interessar verdadeiramente pelas respostas das crianças, ainda que sejam silenciosas ou fragmentadas.
A mediação poética se faz com gestos simples: apresentar uma imagem no chão, ler um livro de arte no colo, projetar uma obra no teto da sala. Tudo depende da intenção que atravessa o gesto. O ambiente também é mediador — por isso, ter obras expostas ao alcance dos olhos, em diferentes espaços, contribui para que a arte esteja presente no cotidiano como algo vivo, e não como evento isolado.
Ser um educador que valoriza a poética: presença que afina o olhar
Ser educador na infância é, antes de tudo, ser alguém que aprende a ver. Ver para além do que está dado, ver o que está em processo, o que está por nascer. E isso exige sensibilidade — uma disposição interna para escutar o que não se diz com palavras, para perceber os sentidos que dançam nos gestos e nos silêncios das crianças.
Quando falamos em um educador que valoriza a poética, falamos de alguém que compreende a educação não como transmissão, mas como travessia. Alguém que caminha ao lado das crianças com olhos de espanto e mãos abertas para acolher o inesperado. É aquele que reconhece, na forma como uma criança escolhe uma cor, na maneira como toca uma imagem ou como permanece em silêncio diante de uma pintura, um gesto de existência plena.
Valorizar a poética é recusar os caminhos apressados da educação instrumentalizada. É entender que formar não é moldar, mas criar espaços de liberdade sensível. É recusar respostas prontas, acolher o que escapa, o que se inventa na relação. Como dizia Gaston Bachelard, “a imaginação não é o contrário da realidade; ela é a condição do real mais profundo”. O educador que acolhe a poética reconhece que o mundo se amplia quando olhado com imaginação.
A poética como forma de escuta
Na prática, esse educador não está à procura de resultados rápidos, mas de processos que gerem sentido. Ele escuta falas inacabadas como poemas. Lê os desenhos das crianças como narrativas visuais. Permanece ao lado, sem controlar. Observa sem julgar. Seu olhar é presença — uma escuta que abraça.
Ele valoriza as pausas. Sabe que o tempo da infância é espiralado, feito de repetições e descobertas. Não se apressa para “ensinar”, porque sabe que as crianças já sabem muitas coisas que os adultos esqueceram. E, por isso, aprende com elas.
A poética como ética da docência
Valorizar a poética também é um gesto ético. É afirmar que cada criança tem o direito de ser vista em sua inteireza, com suas formas singulares de expressão, com seus modos únicos de se relacionar com o mundo. É não reduzir a infância a metas ou avaliações. É confiar.
Esse educador não precisa dominar todas as técnicas, nem ter todas as respostas. Mas precisa estar inteiro. Precisa cuidar do seu próprio olhar, alimentar sua sensibilidade, proteger sua capacidade de maravilhar-se. Um educador sensível é, acima de tudo, alguém que também se permite ser tocado pela arte, pela natureza, pelas pequenas epifanias do cotidiano.
A poética como construção coletiva
A poética na educação não se faz sozinho. Ela se constrói nas relações — entre crianças, entre adultos, entre o espaço e os tempos compartilhados. Um projeto estético na escola da infância nasce do cotidiano: do modo como o ambiente é preparado, dos materiais que são oferecidos, do modo como se fala, do tempo que se oferece para olhar, brincar, estar.
Por isso, o educador poético também é um cuidador de contextos. Ele semeia atmosferas. Sabe que a arte floresce onde há chão fértil: silêncio, escuta, liberdade e vínculo. Cria espaços onde a imaginação é levada a sério e onde os olhos aprendem a ver o invisível.
Ser um educador que valoriza a poética é…
- … deixar-se afetar pela beleza dos gestos cotidianos.
- … confiar que o olhar da criança tem potência criadora.
- … convidar o silêncio como parte do processo de escuta.
- … não apressar os caminhos, nem as respostas.
- … permitir que a arte seja encontro e, não ilustração.
- … registrar o que escapa, o que pulsa, o que vibra.
- … compreender que cada criança é também uma obra em processo.
- … afirmar que educar é, no fundo, um ato de amor estético.
A arte no cotidiano: o espaço como galeria
Não é necessário estar em um museu para apreciar arte. O chão da sala pode ser galeria; o quintal da escola pode ser ateliê. A proposta é integrar a arte ao cotidiano da infância, de modo que ela seja parte do repertório simbólico das crianças.
Disponibilizar livros com imagens de obras, projetar vídeos curtos com artistas contemporâneos, criar espaços de observação e conversa: tudo isso forma um campo fértil para o encantamento estético. O educador pode organizar rodas de apreciação com imagens impressas, ou até promover “exposições” das próprias produções infantis — valorizando o olhar de cada criança como artista e apreciadora ao mesmo tempo.
Apreciação como escuta da subjetividade
Cada criança vê de um jeito. Essa multiplicidade de olhares é riqueza, não ruído. O momento de apreciação é também um exercício de escuta e reconhecimento da subjetividade do outro. Uma obra pode despertar diferentes emoções, lembranças ou invenções. Permitir que essas vozes coexistam é afirmar que a arte educa para a diversidade e o respeito.
Nesse sentido, a apreciação se transforma em prática democrática: o que você vê é legítimo. O que eu vejo também. Podemos conversar sobre isso, sem necessidade de concordar. É o espaço simbólico da convivência sendo alimentado pela arte.
Artistas contemporâneos como parceiros do olhar infantil
Diversos artistas contemporâneos produzem obras que dialogam diretamente com o universo infantil, seja pela cor, pela forma, pelos materiais ou pelas sensações que provocam. A seguir, apresentamos alguns nomes cujas obras podem ser exploradas com crianças pequenas, sempre com propostas de mediação abertas e poéticas:
✦ Beatriz Milhazes
Obras: Meu Limão, Marola, O Mágico
Proposta: espalhar as imagens no chão; convidar as crianças a dançarem com as cores e compor colagens inspiradas nas formas.
Para ver mais: https://www.culturagenial.com/obras-beatriz-milhazes/
✦ Ernesto Neto
Obras: Leviatã Thot, O Sagrado é Amor
Proposta: criar um espaço sensorial com tecidos, aromas e almofadas; permitir que as crianças explorem o espaço como se estivessem dentro da obra.
✦ Yayoi Kusama
Obras: Infinity Mirror Room, Pumpkin
Proposta: brincar com bolinhas coloridas; colar adesivos em uma sala branca e observar como a arte toma o espaço.
✦ Lygia Clark
Obras: Bichos, Objetos relacionais
Proposta: oferecer materiais flexíveis para que as crianças criem esculturas móveis; propor que contem uma história com os “bichos” criados.
Para ver mais: https://www.culturagenial.com/lygia-clark
✦ Vik Muniz
Obras: Pictures of Garbage, Monalisa de Geléia
Proposta: criar imagens com objetos do cotidiano (tampinhas, brinquedos, folhas) e registrar o resultado com fotografias.
Par ver mais: https://www.culturagenial.com/vik-muniz-obras/
✦ Rosana Paulino
Obras: Bastidores, Parede da Memória
Proposta: propor colagens e costuras sobre silhuetas das crianças; conversar sobre retratos e ancestralidade de maneira sensível.
Propostas de mediação no cotidiano da escola
Além das experiências com artistas, a educadora pode criar situações poéticas de apreciação no cotidiano:
- Galeria do chão: imagens espalhadas para que as crianças explorem com os olhos e com o corpo.
- Quadros que falam: cada criança inventa o que a obra diria se pudesse conversar.
- Espelho e arte: após observar uma obra, desenhar a si mesma com o estilo do artista.
- Museu vivo: com o corpo, as crianças representam imagens, criando esculturas humanas.
Cada proposta deve considerar o tempo da infância, respeitando o silêncio, o devaneio, a repetição. A apreciação não exige produção imediata. Às vezes, basta o olhar demorado para que a arte cumpra sua função de tocar.
Registros como memória da sensibilidade
Registrar os momentos de apreciação é também cuidar da memória sensível da infância. Um mural com as falas das crianças, um diário visual com imagens apreciadas, um vídeo com as reações dos pequenos diante de uma obra — tudo isso torna visível o invisível, revelando o pensamento poético em ação.
Os registros não devem ser apenas provas de atividade realizada, mas documentos da escuta, da subjetividade, da construção coletiva de sentidos. Eles ajudam o grupo a revisitar o vivido, a valorizar o processo e a perceber que cada olhar é uma forma de criação.
Considerações finais: olhos de imaginar
Educar o olhar das crianças é educar também seus afetos, sua ética, sua maneira de se relacionar com o mundo. A arte, quando entra na vida da infância com leveza e liberdade, transforma o modo como se percebe a si mesmo e ao outro.
A apreciação das artes visuais com crianças pequenas não é um conteúdo isolado, mas um modo de estar no mundo com delicadeza. É aprender a ver devagar. É cultivar espanto. É permitir que o olhar brinque, que a imaginação voe, que a presença se afine.
Que nas escolas da infância floresçam espaços onde os olhos não apenas vejam, mas sintam. Onde a arte não seja um adorno, mas um chão. Onde cada criança possa dizer: “eu vi, eu senti, eu imaginei”. E que isso seja o bastante para começar uma revolução silenciosa — feita de cor, afeto e presença.