O Pequeno que cuida do Imenso

“Há encontros que cabem na palma da mão. Uma joaninha, um caracol, uma formiga — e o olhar curioso de uma criança que aprende, sem saber, a cuidar do imenso a partir do pequeno.”

O instante em que o mundo se abaixa

Há um momento do dia em que o vento desacelera, as nuvens diminuem o passo e até as vozes lá longe parecem cochichar. É então que a criança se abaixa, quase de cócoras, para ouvir o chão.
O jardim, até então um pano verde bordado de flores e folhas, se abre como um livro vivo — e convida o olhar a passear por suas páginas.

As histórias que andam, voam e se arrastam

Entre a grama e a terra úmida, moram histórias pequeninas: caracóis que carregam casas com espirais que parecem mapas; formigas que caminham como um rio de pontinhos pretos; joaninhas vestidas com seus vestidos vermelhos de bolinhas negras. Cada bichinho é um segredo que se move.

O cheiro doce da terra

A criança se ajoelha. Os joelhos se sujam de pó e orvalho, soltando um perfume de terra molhada que preenche o ar. Ali, no nível do chão, o tempo é outro: tudo parece mais lento e, ao mesmo tempo, cheio de acontecimentos — o salto do grilo, o voo trêmulo da libélula, o zumbido rápido da abelha.

Gestos que são convites

O dedo se estende, mas não para prender: é um convite. A lagarta, peludinha e verde, segue seu caminho sem pressa. A joaninha sobe pela pele miúda e se instala na palma. Há um diálogo silencioso, feito de confiança e espera.

Memórias que voltam com o vento

O adulto que observa reconhece algo naquela cena. Talvez se lembre de seguir uma fila de formigas até descobrir o formigueiro, ou de passar longos minutos olhando um caracol depois da chuva. Talvez recorde o estalar leve das folhas mastigadas por um grilo. Na infância, o corpo sabia ficar imóvel para que a borboleta chegasse perto.

O jardim como mestre

O jardim não é só cenário: é um mestre de ritmos. Ensina que o relógio não manda em tudo, que a pressa espanta o encantamento, que abaixar o corpo amplia o olhar. Cada encontro é um pequeno curso de cuidado e atenção.

Inventar para pertencer

A criança dá nomes aos bichinhos: o besouro vira um cavaleiro de armadura; a lagarta, uma bailarina lenta; o caracol, um viajante que leva a casa às costas. Ela constrói casas de pedrinhas, ruas de gravetos e banquetes de folhas. O jardim se torna uma aldeia mágica onde ninguém tem pressa.

Quando chove

A terra exala um cheiro profundo, quase doce. Minhocas riscam caminhos úmidos, caracóis passeiam, gotas se penduram nas teias como colares de cristal. A criança, com capa colorida, explora ainda mais — cabelos grudados na testa, mãos molhadas, mas olhos brilhando como a própria chuva.

As lições invisíveis

No silêncio atento, ela aprende que o frágil também é forte. Que a beleza se esconde nas coisas pequenas. Que respeitar o pequeno é um jeito de cuidar do imenso.

Um jardim dentro de si

Sem perceber, a criança semeia dentro de si um jardim de delicadezas. Um lugar onde toda forma de vida terá sempre espaço para florescer.

“Borboletas”

Manoel de Barros (Do livro Ensaios fotográficos, 2000)

“Borboletas me convidaram a elas.
O privilégio insetal de ser uma borboleta me atraiu.
Por certo eu iria ter uma visão diferente dos homens e das coisas.
Eu imaginava que o mundo visto de uma borboleta seria, com certeza,
um mundo livre aos poemas.
Daquele ponto de vista:
Vi que as árvores são mais competentes em auroras do que os homens.
Vi que as tardes são mais aproveitadas pelas garças do que pelos homens.
Vi que as águas têm mais qualidade para a paz do que os homens.
Vi que as andorinhas sabem mais das chuvas do que os cientistas.
Poderia narrar muitas coisas ainda que pude ver do ponto de vista de
uma borboleta.
Ali até o meu fascínio era azul.”
(Cultura Genial)

🌿✨Breve análise de “Borboletas” – Manoel de Barros

Neste poema, Manoel de Barros faz um gesto que é típico de sua obra: desloca o olhar para o mínimo, o marginal, o não-humano, para então revelar grandeza e poesia onde normalmente não se olha.

Ao imaginar-se borboleta, ele assume um “privilégio insetal” — uma expressão curiosa e afetuosa — para experimentar o mundo de outra perspectiva. É como se ele dissesse que, para enxergar melhor, às vezes é preciso deixar de ser “gente” e se tornar parte da paisagem.

O que a borboleta vê não é medido pela lógica humana, mas pelo valor poético das coisas: árvores mais competentes em auroras, tardes mais bem aproveitadas pelas garças, águas mais preparadas para a paz.
Há aqui uma inversão delicada: o homem, tantas vezes se colocando como centro, é visto como aprendiz das outras formas de vida.

A última imagem — “Ali até o meu fascínio era azul” — sintetiza o encantamento. A cor azul, ligada à liberdade e à leveza, marca a experiência como algo luminoso e imaterial.


🌿✨Cultivar poesia no cotidiano

Cultivar poesia não exige papel e caneta.
Exige olhos que percebam o voo torto de uma folha,
ouvidos que escutem o intervalo entre uma palavra e outra,
mãos que saibam sentir a temperatura da xícara antes do café.

A poesia está no cheiro do pão que acorda a casa,
no silêncio que veste a manhã,
no jeito como a criança segura uma pedrinha como se fosse tesouro.

Cultivar poesia é regar delicadezas.
É permitir que o comum floresça em espanto.


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