Quando o Brincar é Encontro: Gestos que Aproximam

“É no brincar, e talvez apenas no brincar, que a criança ou o adulto fruem sua liberdade de criação.”
— D. W. Winnicott

O brincar é mais do que um ato. É um estado de presença, uma abertura ao outro, um território onde os gestos ganham linguagem e os corpos se comunicam sem a necessidade de palavras. Quando pensamos a infância, não como uma etapa a ser superada, mas como uma maneira de estar no mundo, o brincar aparece não apenas como atividade espontânea, mas como uma forma de encontro — com o outro, consigo e com o mundo.

Na escola da infância, onde os dias são moldados por rotinas, ritmos e espaços, o brincar se inscreve como campo sensível de relações. Brincar com uma criança é mais do que entreter: é dispor-se ao vínculo, à escuta, ao improviso. É permitir que o tempo se alargue, que os sentidos se agucem e que as presenças se reconheçam.

Brincar como linguagem de vínculo

Winnicott (1975), psicanalista que compreendeu o brincar como estrutura fundante do ser, afirmava que é no espaço do brincar que o self se organiza, se revela e se desenvolve. Para ele, brincar é um campo potencial, intermediário entre o mundo interno e o mundo externo, entre o eu e o outro. É nesse território que a criança experimenta relações, desejos, medos, afetos.

Ao brincar com alguém, a criança não está apenas manipulando objetos ou ocupando o tempo. Ela está criando mundos partilhados. O brinquedo é, muitas vezes, um convite que ela estende: “você brinca comigo?” — e essa pergunta carrega a potência de um gesto de aproximação. Aceitar o convite não é só entrar no jogo, mas reconhecer o outro como legítimo em sua existência lúdica, como ensina Maturana (2001).

Nesse sentido, o brincar é encontro quando se dá como gesto de disponibilidade. Um educador que brinca é um adulto que se deixa afetar, que se desarma da urgência e se aproxima da criança por outros caminhos: pelo chão, pelo olhar, pelo gesto aberto.

A escola como território do encontro

Na escola da infância, o brincar não deve ser apenas tolerado — mas cultivado como expressão essencial do ser criança. Philippe Ariès (1981) já denunciava como a sociedade moderna gradualmente apagou os tempos de brincar livre, substituindo-os por atividades dirigidas, normatizadas e adultocêntricas. Em oposição, os estudos contemporâneos da infância — como os de Manuel Sarmento e Adriana Friedmann — recuperam o valor do brincar como linguagem própria da criança, como expressão de autonomia, criatividade e relação.

O espaço escolar precisa, portanto, ser reconfigurado como lugar de encontros lúdicos. Isso não se limita ao momento do “recreio” ou à “hora do brinquedo”. Trata-se de criar uma pedagogia da presença, em que os pequenos gestos de escuta, os olhares demorados, os toques respeitosos e a atenção aos detalhes se tornem práticas constantes.

Buber (1977) falava da relação Eu-Tu como espaço sagrado de encontro, onde o outro não é reduzido a um objeto de manipulação, mas reconhecido em sua inteireza. Na relação com a criança, o brincar pode ser um meio de instaurar essa relação Eu-Tu. Quando um educador se ajoelha, entra na roda, segura um carrinho ou ajuda a construir uma cidade de blocos, está dizendo: “eu estou aqui, com você, por inteiro.”

Brincar é encontro porque é escuta

A escuta é um gesto ético e estético. Escutar, no contexto do brincar, não é apenas ouvir o que a criança diz com a boca — é captar o que ela expressa com o corpo, com o olhar, com os silêncios e com o próprio jogo. É compreender que as brincadeiras carregam histórias, memórias, medos, alegrias, e também pedidos de cuidado.

Adriana Friedmann (2006) fala sobre a escuta sensível como base para compreender a criança em sua inteireza. Ela propõe que escutemos não apenas com os ouvidos, mas com o corpo inteiro — uma escuta encarnada, presente. E isso se aplica diretamente ao brincar: escutar uma criança brincando é testemunhar sua linguagem mais fluida, é observar como ela elabora o mundo e se posiciona nele.

Quando um educador se coloca como presença escutante, permite que o brincar se torne um campo de confiança. Nesse campo, a criança pode se arriscar, criar, destruir e refazer — sabendo que há um outro ali que sustenta simbolicamente esse processo.

Os pequenos gestos que aproximam

O encontro não mora apenas nos grandes momentos planejados, mas nos pequenos gestos cotidianos: um educador que aprende a amarrar um lenço de faz-de-conta na cabeça porque “hoje é dia de ser pirata”; um olhar que valida uma construção de blocos como a “casa mais bonita do mundo”; um silêncio que respeita o tempo da imaginação.

A aproximação acontece quando o adulto se disponibiliza ao tempo da criança, ao seu ritmo, ao seu universo simbólico. Muitas vezes, o que aproxima não é o que se faz, mas o como se está presente.

Essa presença exige intencionalidade e afeto. Como lembra Paulo Fochi (2021), a escola da infância deve ser um espaço de convivência estética e política. O brincar, nessa perspectiva, é mais do que diversão: é uma forma de existir no mundo, de produzir cultura e de afirmar direitos.

O brincar como direito e resistência

A Convenção sobre os Direitos da Criança (ONU, 1989) reconhece o brincar como direito fundamental. No entanto, esse direito ainda é frequentemente violado — seja pela escolarização precoce, pela medicalização da infância, pela falta de espaços adequados ou pela adultização dos tempos e corpos infantis.

Defender o brincar como direito é reconhecer que ele não é acessório, mas núcleo vital da infância. É afirmar que toda criança tem direito a imaginar, a explorar, a fazer de conta, a errar, a tentar de novo. E que, ao brincar com ela, estamos reconhecendo sua humanidade, sua potência e sua singularidade.

Em tempos marcados pela aceleração e pelo controle, o brincar aparece como resistência. Ele desafia as lógicas da produtividade e do imediatismo. Ele convida ao cuidado, ao olhar mais lento, ao gesto mais atento. E, acima de tudo, convida ao encontro.

Um educador que brinca

Um educador que brinca é aquele que, mesmo com todas as demandas e cansaços, reserva um lugar interno para o lúdico. Não se trata de se tornar criança novamente, mas de reconhecer que o brincar pode ser também uma postura de escuta e presença.

É alguém que entra no faz-de-conta com respeito, sem roubar a cena. Que propõe jogos com intenção, mas deixa espaço para o improviso. Que entende que, ao brincar, está tecendo vínculos, sustentando processos e favorecendo aprendizagens profundas — mesmo quando tudo parece “apenas” um jogo.

Como lembra Gilles Brougère (2010), o brincar é uma atividade complexa, que combina regras e liberdade, estrutura e invenção. O papel do educador, nesse cenário, é acompanhar sem dominar, inspirar sem dirigir, sustentar sem controlar.

A Presença do Educador da Infância sob o Prisma de Luciana Ostetto

A presença do educador da infância é muito mais do que um corpo que ocupa o espaço: é um gesto ético, político e sensível que sustenta o cotidiano das relações educativas. Para a pesquisadora e professora Luciana Ostetto, pensar a presença docente implica considerar o educador como alguém que cria condições para que a infância aconteça em sua inteireza, com tempo, escuta e cuidado.

Luciana Ostetto nos convida a compreender o educador como um sujeito da escuta e da atenção ao outro — alguém que habita o cotidiano com intencionalidade, delicadeza e compromisso ético com as crianças. Em seus escritos, ela valoriza o que chama de micropolíticas da educação infantil: os pequenos gestos, os modos de olhar, o tom da voz, a forma de acolher os silêncios e as palavras das crianças. É nesses detalhes que se revela a potência da presença.

Em vez de pensar o educador apenas como aquele que ensina ou organiza a rotina, Ostetto o compreende como alguém que acompanha, que constrói relações e que cuida do ambiente de convivência, reconhecendo as infâncias em sua pluralidade e complexidade. Para ela, o educador está presente quando escuta de verdade, quando se permite ser afetado, quando cria espaços de liberdade e de autoria para as crianças — e para si mesmo.

“É necessário que os adultos se façam presença para as crianças, que possam construir com elas uma escuta que seja de fato acolhedora e sensível ao que se anuncia nos gestos, nos olhares, nas palavras e nos silêncios.” — Luciana Ostetto

Essa presença não é neutralidade, mas um posicionamento ético diante do outro. Ser presença, segundo Ostetto, é comprometer-se com a infância como experiência viva, e não como fase de espera. É valorizar o brincar, o imaginar, o experimentar, como formas legítimas de aprender e estar no mundo. Isso exige um educador atento aos processos, que reconhece as crianças como sujeitos de cultura e de direito.

Sob sua perspectiva, a presença do educador também está profundamente ligada à formação contínua — não como acúmulo de saberes técnicos, mas como caminho de reflexão sobre si, sobre o outro e sobre o mundo. Ostetto defende que a formação do educador da infância deve ser atravessada pela experiência, pela sensibilidade e pela escuta de si e do coletivo. Nesse sentido, estar presente é também estar em formação permanente.

Ao destacar o valor das experiências cotidianas e dos vínculos construídos com as crianças, Ostetto propõe uma prática docente que não se apoia apenas em planejamentos rígidos ou em resultados visíveis, mas na construção lenta e profunda de relações significativas. É no cotidiano — com suas repetições, seus desafios e suas brechas de beleza — que o educador exerce sua presença como gesto de cuidado e escuta ativa.

Assim, a presença do educador da infância, à luz de Luciana Ostetto, não se restringe à função, mas se expande como atitude: é ser com, estar para e cuidar de forma ética, poética e política. Uma presença que reconhece a criança em sua singularidade, que sustenta o tempo do brincar, que olha e vê, que ouve e acolhe, que acompanha e se permite ser acompanhado.

Considerações finais: educar como gesto de encontro

Quando o brincar é encontro, a educação se transforma. Ela deixa de ser transmissão de conteúdos para se tornar um gesto de hospitalidade, um espaço de construção de laços, um território de afetos e descobertas partilhadas.

Que possamos, como educadores da infância, cultivar esse lugar onde o brincar seja reconhecido em sua potência vincular. Onde possamos nos aproximar das crianças com olhos de encantamento e gestos que dizem: “eu estou aqui, comigo, contigo, com o mundo.”

Porque, no fim das contas, brincar é um jeito de dizer “eu vejo você”. E ser visto é, talvez, a forma mais profunda de encontro.


Referências

  • Ariès, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: LTC, 1981.
  • Brougère, Gilles. Brinquedo e Cultura. São Paulo: Cortez, 2010.
  • Buber, Martin. Eu e Tu. São Paulo: Centauro, 1977.
  • Fochi, Paulo. Educação Infantil como um direito de viver a infância. In: Fochi, P. et al. Infâncias e o tempo do brincar. Penso, 2021.
  • Friedmann, Adriana. A vez e a voz das crianças: escutas antropológicas e poéticas da infância. São Paulo: Panda Books, 2006.
  • Maturana, Humberto. Emoções e Linguagem na Educação e na Política. Belo Horizonte: UFMG, 2001.
  • Ostetto, Luciana Esmeralda. Infância e Educação Infantil: Diálogos com as Políticas e com o Cotidiano. Campinas, SP: Autores Associados, 2014.
  • Sarmento, Manuel. “As culturas da infância nas encruzilhadas da segunda modernidade.” In: Educ. Soc., Campinas, 2005.
  • Winnicott, D. W. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
  • ONU — Organização das Nações Unidas. Convenção sobre os Direitos da Criança, 1989.

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