O nosso ofício se abre à presença da natureza cotidianamente, reconhece que o trabalho não se restringe a prateleiras com objetos pedagógicos, mas se expande para jardins, quintais, praças, riachos, troncos caídos, conchas e pedrinhas. Nesse espaço, a infância encontra a possibilidade de autoria, de criação e de liberdade — dimensões essenciais para a formação de sujeitos inteiros e democráticos.
O brincar como encontro com a vida
O brincar é linguagem. É forma de pensar, de sentir e de se relacionar com o mundo. Quando falamos de brincar com a natureza, não nos referimos apenas a levar crianças ao ar livre, mas a promover experiências que as façam sentir-se parte de um todo vivo.
Leia Tiriba, referência fundamental nesse campo, nos lembra que a natureza não é apenas um cenário para o brincar, mas a própria condição de possibilidade de uma vida plena. Em seus estudos, a autora insiste que a criança tem direito ao contato cotidiano com ambientes naturais, porque ali ela experimenta uma ecologia do corpo, da imaginação e da afetividade.
Brincar na natureza é cultivar pertencimento. É descobrir que a árvore pode ser escada, sombra, casa, abraço. É perceber que a pedra pode ser fogão, moeda, castelo ou simplesmente pedra. É deixar-se conduzir pela poesia daquilo que é imprevisível, que não cabe nos moldes plásticos da sociedade de consumo.
Infâncias contemporâneas e a distância da terra
O mundo contemporâneo, marcado pelo ritmo acelerado da vida urbana, pelas telas digitais e pelo consumo de objetos industrializados, tem afastado as crianças de experiências diretas com a natureza. Em muitas cidades, a infância vive cercada por muros, pisos de cimento, grama sintética e brinquedos de plástico em parques padronizados.
Esse cenário empobrece a experiência lúdica. Como lembra Tiriba, a infância urbana precisa de uma “alfabetização ecológica”, que não é ensinar conceitos prontos sobre meio ambiente, mas favorecer vínculos afetivos e sensoriais com a terra, a água, o vento, os insetos e o verde. É desse vínculo que pode nascer uma postura ética de cuidado e responsabilidade com o planeta.
Ao distanciar a criança da natureza, corremos o risco de reduzir o brincar à repetição de gestos previsíveis em brinquedos com funções pré-estabelecidas. A imaginação se limita, a autoria se perde, e o brincar deixa de ser aventura para se tornar apenas consumo.
Materioteca brincante: a natureza como acervo vivo
Pensar uma materioteca brincante que incorpore a natureza é abrir-se à ideia de que o acervo de materiais não está apenas dentro da sala ou da escola, mas se expande em território. Cada espaço natural pode ser compreendido como uma biblioteca de elementos vivos.
- Pedras e conchas podem se tornar instrumentos musicais, moedas de jogos inventados, esculturas efêmeras.
- Folhas, galhos e sementes se transformam em bonecos, animais, enfeites ou simplesmente companheiros de contemplação.
- Água permite experiências de fluxo, de contenção, de transbordamento e de descobertas físicas.
- Terra e areia convidam a moldagens, cozinhas de faz de conta, construções coletivas.
- O vento é companheiro invisível, que move tecidos, papéis, cabelos e desperta sensibilidade poética.
Aqui, a função da educadora e do educador não é dar forma pronta a esses usos, mas disponibilizar a possibilidade do encontro. É organizar tempos, espaços e mediações que garantam liberdade de experimentação e autoria às crianças.
Autoria e liberdade: a poética do brincar
Autoria na infância significa poder decidir, experimentar, arriscar-se sem medo de errar. É reconhecer que cada criança tem um modo singular de se relacionar com os materiais e com os elementos naturais. A liberdade está em poder inventar usos não previstos, criar narrativas próprias, escolher o que fazer com aquilo que a natureza oferece.
Nesse sentido, brincar com a natureza é também um gesto político. É resistir à lógica do consumo que tenta oferecer brinquedos prontos, descartáveis e de curta duração. É devolver à criança o direito de criar mundos a partir do simples. É reencantar o cotidiano e cultivar a imaginação como força transformadora.
Inspirações para práticas pedagógicas
Na organização de uma materioteca brincante que valorize a natureza, é possível pensar em práticas que dialoguem com a escola da infância e com o cotidiano das famílias:
- Cantinhos de natureza dentro da sala – pequenos cestos com elementos coletados em passeios: folhas, pedras, sementes, conchas. Um convite para manipulação, contação de histórias e invenções.
- Exploração de texturas e sensações – caixas sensoriais com areia, argila, água e gravetos para crianças pequenas tocarem, amassarem, misturarem. O corpo é o primeiro mediador da relação com o mundo.
- Passeios de coleta poética – caminhadas em que as crianças recolhem o que a natureza oferece. Depois, esses elementos podem virar exposições coletivas, colagens ou instalações efêmeras.
- Diários da natureza – registros feitos pelas próprias crianças, com desenhos, molduras vazadas, fotografias ou pequenos relatos, guardando impressões de seus encontros. Aqui a escuta da professora ganha centralidade.
- Arte efêmera ao ar livre – inspiradas em artistas como Andy Goldsworthy em que as crianças podem criar mandalas de folhas, esculturas de pedras ou desenhos na areia. Obras que se desmancham, mas permanecem na memória.
- Vivências com água – bacias, canaletas, baldes e conchas para experimentar fluxos, enchimentos e transbordamentos. A água é elemento vital e lúdico que provoca encantamento.
- Narrativas com elementos naturais – galhos viram personagens, pedras são reinos, folhas se tornam asas. O teatro do faz de conta encontra na natureza um repertório inesgotável. Apoiar-se na obra de Frans Krajcberg para ampliar referências e encantos.
A educadora como guardiã de vínculos
Nesse processo, o papel da educadora é fundamental. Não como quem dirige, mas como quem escuta e garante que o espaço de liberdade seja possível. É preciso coragem para soltar o controle, para permitir que a natureza entre de maneira imprevisível no cotidiano pedagógico.
Leia Tiriba ressalta que cuidar da relação das crianças com a natureza é também cuidar da relação dos adultos com o mundo natural. Não podemos oferecer às crianças aquilo que não cultivamos em nós mesmos. Assim, é urgente que educadores também se permitam brincar, tocar a terra, sentir o vento, observar o movimento das nuvens.
A educadora é guardiã de vínculos: protege o direito de a criança experimentar a vida em sua inteireza, sem reduzi-la a atividades dirigidas ou a objetos industrializados.
O brincar com a natureza como ética e estética
A ética do cuidado com a infância e com o planeta se entrelaça ao brincar com a natureza. Ao mesmo tempo, há uma dimensão estética — de beleza, de sensibilidade — que se revela nesses encontros. O brincar não é apenas funcional, mas também poético: a beleza de uma criança soprando sementes de dente-de-leão, a dança improvisada de panos ao vento, o silêncio atento diante de uma formiga carregando folhas.
Esse modo de educar é, portanto, uma pedagogia sensível. Uma pedagogia que valoriza a presença, a escuta e a potência criadora da infância.
Cultivar práticas de liberdade
Em tempos em que a infância é cada vez mais cercada por muros e telas, brincar com a natureza é um ato de resistência e de esperança. É devolver às crianças a possibilidade de serem autoras, de experimentarem a liberdade e de criarem relações de cuidado com o mundo.
A materioteca brincante não é apenas um espaço físico, mas uma filosofia: um convite para olhar a infância como potência criadora, capaz de transformar qualquer elemento natural em narrativa, poesia e jogo. Brincar com a natureza é, no fundo, ensinar a viver em liberdade, em autoria e em poesia.
Propostas de brincar com a natureza para bebês e crianças pequenas
1. Experiências sensoriais com elementos naturais
- Cestos com folhas macias, galhos finos, pinhas, pedras lisas e sementes grandes, sempre higienizadas e observadas pelo adulto.
- Permitir que o bebê explore com a boca, o toque e o ouvido: o som da pedra batendo na outra, o farfalhar da folha, a aspereza do galho.
- O adulto acompanha, nomeia, amplia a experiência sem dirigir.
2. Contato com a água
- Bacias rasas com água para que possam bater as mãos, molhar paninhos ou jogar brinquedos naturais (sementes, pedras lisas).
- Experiência com gotinhas de água na pele, vaporizadores e borrifadores, que despertam frescor e curiosidade.
- Chuva: quando possível, permitir que sintam a chuva leve no corpo, um gesto de encantamento.
3. Exploração do chão e da terra
- Para quem engatinha ou começa a andar, o chão de grama é laboratório de equilíbrio e sensações.
- Terra e areia: mexer, amassar, deixar escorrer entre os dedos. Uma primeira experiência de transformação e permanência.
- O adulto garante segurança, mas não impede o contato (lembrando que um pouco de sujeira também é aprendizado).
4. Som e música da natureza
- Ouvir o canto dos pássaros, o barulho do vento nas árvores, o som das ondas ou da água correndo.
- Criar momentos de silêncio atento com o grupo, uma escuta coletiva da vida ao redor.
- Explorar instrumentos improvisados: bater duas pedras, assoprar folhas, sacudir sementes.
5. Passeios ao ar livre
- Para bebês no colo ou no carrinho: contemplar árvores, flores, céu, nuvens em movimento.
- Para os que já andam: pequenas caminhadas em gramados, quintais ou praças, explorando o ritmo do próprio corpo.
6. Descoberta de cheiros e sabores
- Hortinhas sensoriais: manjericão, alecrim, hortelã, erva-doce. As crianças podem tocar, amassar e sentir o aroma.
- Experimentar frutas frescas colhidas no quintal ou trazidas para a roda de convivência: o sabor se conecta ao ciclo da natureza.
7. Brincadeiras com o vento
- Tecidos leves ou lenços coloridos que dançam ao vento, para que bebês possam observar ou segurar.
- Bolhas de sabão, que o vento leva e espalha.
- Molas e cataventos que giram, revelando a força invisível do ar.
8. Sombras e luz natural
- Observar as sombras das árvores no chão, movimentar panos translúcidos no sol, brincar com lanternas em espaços escuros.
- Experiências simples de luz e sombra despertam atenção e encantamento, mesmo nos muito pequenos.
O papel do educador nesses encontros
Com bebês e crianças pequenas, o mais importante é garantir um ambiente seguro e acolhedor, sem pressa, sem excesso de mediação.
- O adulto é presença que cuida e nomeia, mas não antecipa tudo.
- Ele abre tempo para a contemplação — ver as formigas passando, acompanhar o voo de uma borboleta, sentir a mudança de temperatura ao sair da sombra para o sol.
- Essa postura de “estar junto” fortalece vínculos, dá segurança e permite que a criança explore com autonomia crescente.
Leia Tiriba lembra que a criança pequena aprende o mundo com o corpo inteiro, e a natureza é a grande parceira dessa descoberta. Por isso, cada experiência, mesmo a mais simples, é uma aula de sensibilidade, ecologia e liberdade.