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Há uma maneira de estar com a criança que não se mede por metas, não se limita a currículos, nem cabe em planejamentos prontos. É uma presença que se oferece inteira, como o solo fértil que não dita o que vai brotar, mas sustenta o crescer. É nesse chão de delicadeza que se finca o gesto de acolher: um gesto que não se resume a receber, mas que implica escutar com o corpo, acompanhar com o coração e reinventar-se com coragem.
Na companhia da infância, todo dia é recomeço. A criança chega ao mundo com olhos abertos à surpresa, às direções improváveis, aos convites da vida em sua forma mais bruta e bela. E o educador que a acolhe precisa se deixar atravessar por essa potência: precisa despir-se das fórmulas e fazer-se caminho — um caminho que se faz ao andar junto.
Acolher: mais que receber, é habitar junto
Acolher a criança é muito mais do que dar-lhe um espaço físico, um canto na sala ou um nome na chamada. Acolher é uma prática encarnada, feita de escuta profunda, de afeto cultivado e de tempo ofertado.
É entender que cada criança traz um mundo inteiro nos bolsos — suas histórias, seus medos, seus desejos, seus silêncios. E para que esse mundo possa desabrochar, o adulto precisa aprender a estar com, a se demorar nos encontros, a abrir brechas para o inesperado.
Luciana Ostetto (2015), ao tratar da presença do educador na educação infantil, nos lembra que estar com a criança é um exercício de afinação sensível. Não basta estar fisicamente: é preciso estar afetivamente, com disponibilidade real para o que ela traz. É preciso olhar com atenção o desenho que ela mostra, escutar a narrativa fragmentada que ela inventa, perceber o choro disfarçado de birra ou a inquietude disfarçada de silêncio.
Acolher é uma ética. E, como toda ética, nasce do compromisso com o outro. No caso da infância, é o compromisso de zelar pelo tempo do crescer, pelo direito ao brincar, pelo respeito aos ritmos e modos de ser.
A escuta como costura: entre gesto e atenção
A escuta, quando viva, não é um ato passivo. É uma construção artesanal. Ela se dá com as mãos que preparam o espaço, com os olhos que acompanham os detalhes, com os corpos que se afinam. Escutar é um gesto de abertura radical — é sustentar o não saber, é acolher a dúvida como lugar legítimo, é permitir que o cotidiano se torne também surpresa.
Quando o educador escuta, ele costura. Costura o que a criança expressa com o que ela não consegue dizer. Costura o vivido com o imaginado. Costura a prática com o afeto.
Esse saber de costura é um saber ancestral e, ao mesmo tempo, político. É artesanal, porque exige tempo, precisão, paciência e entrega. E é político porque se coloca contra a lógica da rapidez, da produtividade e da padronização que tantas vezes invade o cotidiano das instituições educativas.
Inspirados por Walter Benjamin (1984), podemos dizer que a escuta é da ordem da narração — não da informação. Enquanto a informação é rápida, técnica e fechada, a narração é lenta, subjetiva e aberta. Escutar uma criança é permitir que ela seja narradora de si, autora de seus próprios contos e percursos. É necessário um ouvido treinado não para interpretar, mas para se deixar afetar.
Em meio à velocidade vertiginosa da informação que nos envolve diariamente, a narração surge como um ato essencial de resistência e humanidade. Walter Benjamin, ao refletir sobre o papel das histórias, nos lembra que narrar é mais do que transmitir dados: é um modo profundo de compartilhar experiências, de dar sentido à vida através do encontro entre passado e presente.
Na era da instantaneidade e da fragmentação, a narração recupera seu lugar como um fio que costura o tempo, que une gerações e que preserva a memória viva das comunidades. Diferente da informação — que se exaure no imediato, no factual e no efêmero — a narração abre espaços para o silêncio, para a emoção, para a subjetividade, oferecendo um tempo dilatado onde o significado pode florescer.
Benjamin nos alerta que, sem a narração, corremos o risco de perder a transmissão do saber que não cabe em manuais ou estatísticas, mas que vive no gesto, no afeto, na experiência compartilhada. Nas escolas, nas famílias, nas relações cotidianas, narrar é um convite para que as histórias se tornem patrimônio coletivo, para que o sentido se construa no entrelaçar das vozes, onde o conhecimento não é apenas técnico, mas também vivido e sentido.
Assim, especialmente em tempos de excesso de informação e isolamento, a narração pode ser um gesto de cuidado e presença — um gesto que nos lembra que educar é também escutar, contar e recontar histórias, reconhecendo a infância, a cultura e a diversidade como fontes inesgotáveis de aprendizado e humanidade.
A prática como campo vivo da invenção
Um educador que escuta é um educador que se reinventa. Porque toda escuta verdadeira nos tira do lugar. Ela nos desloca, nos provoca, nos convida a transformar a maneira como planejamos, como propomos atividades, como avaliamos, como habitamos o espaço.
A escuta não pode ser apenas um momento da prática: ela precisa ser sua espinha dorsal. Isso significa que planejamentos podem nascer de conversas com as crianças, que uma observação sensível pode dar origem a um novo projeto, que um gesto espontâneo pode gerar uma nova organização do espaço. Significa confiar que a criança tem potência de autoria, de criação, de pensamento — e que nossa tarefa não é antecipar seus caminhos, mas acompanhar, nutrir e sustentar suas buscas.
Quando ouvimos de verdade, nosso olhar muda. E quando o olhar muda, tudo se transforma: o modo de documentar, de dialogar com as famílias, de propor espaços e materiais, de avaliar processos.
A prática, então, deixa de ser repetição de receitas e passa a ser composição viva.
Como diria Madalena Freire, é necessário “reinventar o cotidiano”. E isso só é possível com escuta. Porque a escuta é o que nos impede de endurecer.
O educador como quem acompanha aventuras
A criança, em sua liberdade criativa, não segue trilhas prontas. Ela se move por espantos, por curiosidades, por desejos pequenos e grandes. A cada dia, inventa formas de habitar o mundo.
E o adulto que se dispõe a acompanhá-la precisa abrir mão do controle para experimentar o voo.
Acompanhar não é conduzir. É saber andar ao lado. É aceitar não saber para onde se vai. É confiar que o percurso importa mais que o ponto de chegada.
É preciso, como escreve Manuel de Barros, “desaprender para ter um novo saber”. O educador que acompanha precisa se desfazer de certezas, permitir-se perder e reaprender os nomes das coisas. Precisa aprender a brincar com o que não cabe nas planilhas, a dar valor ao detalhe mínimo, à história inventada, à pergunta sem resposta.
Nesse sentido, o educador torna-se um parceiro de aventuras. Alguém que não está acima da criança, mas ao lado. Alguém que aprende com o que ela mostra — ainda que em silêncio.
Alguém que sustenta com afeto os desvios, os labirintos, as voltas.
Reinvenção como forma de presença
Assumir uma postura escutante e acolhedora exige coragem. É mais fácil seguir modelos prontos.
É mais cômodo repetir práticas já estabelecidas. Mas educar com escuta é fazer-se vulnerável.
É se deixar afetar. É repensar a cada dia o próprio fazer.
A reinvenção docente não é um luxo. É uma necessidade. Porque as crianças mudam. Os contextos mudam. Nós mudamos. Um educador que se abre à escuta precisa revisitar seus valores, suas certezas, seus medos. Precisa permitir-se errar, experimentar, tentar de novo. Precisa reconhecer-se também como ser em processo — como alguém que aprende enquanto ensina.
Essa reinvenção cotidiana é política. É ela que nos permite resistir à massificação. É ela que nos lembra que a educação é relação — e que, portanto, não se pode congelar.
Paulo Freire nos lembra que “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”. Esse entre — esse espaço relacional — é o lugar da escuta, do afeto e da reinvenção.
Costurar presença: um ato de esperança
No final das contas, educar com escuta é um gesto de esperança. Esperança não como espera passiva, mas como aposta ativa na potência da infância. Esperança como quem cultiva — sabendo que o tempo do brotar não se apressa. É com esse saber delicado que costuramos a prática: com fios de atenção, com agulhas de afeto, com pontos de escuta. Costuramos o hoje com o porvir. Costuramos o saber com o sentir. Costuramos a escola com a vida.
E a criança, quando se sente escutada de verdade, se abre. Inventa, propõe, compartilha, floresce. Porque no fundo, o que toda criança deseja é isso: um adulto que a veja com verdade, que escute com o corpo inteiro, que aceite andar junto, sem mapa, sem pressa, com afeto e presença.
Coleção :”Para guardar no bolso (ou no coração)“
Fragmentos que nos ajudam a lembrar que a infância é feita de sutilezas, e que educar também é um ato poético: acolher as miudezas, escutar os silêncios, reconhecer os tesouros escondidos nos bolsos dos dias. Sobre o valor das coisas pequenas
“Tudo que é pequeno me agrada.
Eu gosto de passarinho que anda no chão.
Eu gosto de pedra pisada.
Gosto de ninho no beiral.”
— O Livro das Ignorãças
🔹As crianças também colecionam o que a pressa dos adultos não vê. Em seus bolsos, cabem ninhos de imaginação e pedras com nome próprio.