Quando o silêncio é berço de mundos
Há silêncios que assustam. Outros, que acolhem. Há silêncios de ausência e silêncios de presença. Mas há, sobretudo, um tipo de silêncio que só a infância conhece bem: aquele que vem antes do voo, antes do riso, antes da invenção — o silêncio como ninho.
Na escuta atenta das infâncias, é possível perceber que o silêncio não é vazio: é gestação de sentidos, é morada do devaneio, é convite ao imaginário. E talvez seja nesse terreno invisível que o educador encontra um dos maiores desafios — e uma das mais delicadas belezas — do seu ofício: cultivar espaços onde o silêncio não é interrompido, mas escutado como território fértil da imaginação.
Este artigo é um convite: a escutar o silêncio como se escuta um sussurro antigo, a reconhecê-lo como solo sensível para a infância criar, e a acolhê-lo como parte da pedagogia que valoriza o tempo, a escuta e o invisível.
🍃 Silêncio não é ausência: é presença em outra linguagem
Na escola, o silêncio muitas vezes é lido como falta: falta de resposta, de participação, de movimento. Mas, para a infância, o silêncio é outro idioma. É ali, no intervalo entre uma palavra e outra, que a criança sonha. É no silêncio que ela escuta a si mesma, imagina o que não foi dito, fabrica mundos com o olhar perdido para o alto.
A infância é cheia de sons, sim — do riso, do choro, da cantiga — mas é também feita de pausas. E nessas pausas habita a potência de criação.
Gastón Bachelard, ao refletir sobre a imaginação poética, afirma que é no silêncio e na lentidão que o devaneio nasce. O devaneio, para ele, é diferente do pensamento lógico: ele não resolve problemas, mas abre janelas, cria imagens, constrói mundos que não existiam antes.
Para a criança, o silêncio pode ser um atalho para esse devaneio criador. Um tempo em que o mundo adulto desacelera o passo e ela, enfim, pode escutar sua própria narrativa interior. É preciso não interromper esse silêncio. É preciso habitá-lo.
✨ Imaginação: o voo que nasce do ninho
A imaginação não se ensina — ela se cultiva. E seu terreno preferido é o da liberdade. A criança imagina quando não há respostas prontas, quando não há roteiros fechados, quando o ambiente permite que o pensamento voe sem medo. Para isso, é preciso que a escola aceite o silêncio como parte do processo criativo.
Como nos lembra Rubem Alves, “a criatividade é filha da liberdade, e irmã do silêncio”. É o silêncio que permite à criança criar suas próprias perguntas, ensaiar hipóteses sem ser corrigida, inventar personagens sem que alguém diga que estão “errados”.
A imaginação não nasce do barulho da instrução, mas do silêncio da escuta. Escuta de si, escuta do outro, escuta das coisas pequenas: da sombra que se mexe no chão, da nuvem que muda de forma, da fresta de luz que dança na parede.
O silêncio, nesse contexto, é ninho da imaginação porque acolhe o que ainda não tem forma.
🪺 Ambientes que acolhem o silêncio criador
Na escola da infância, tudo comunica. O espaço é também educador. Por isso, se queremos valorizar a imaginação e o silêncio que a nutre, é preciso repensar os ambientes pedagógicos.
Um ambiente sensível ao silêncio é aquele que:
- Oferece tempos desacelerados, em que a criança não precise correr de uma atividade para outra;
- Valoriza a brincadeira solitária e os momentos de introspecção;
- Disponibiliza materiais abertos (panos, pedras, caixas, gravetos) que não “falam demais”, mas esperam pela invenção da criança;
- Cria espaços acolhedores, com luz natural, cantos de leitura, de imaginação, de descanso;
- Respeita o tempo de escuta e de espera, sem preencher todos os silêncios com fala adulta.
Como inspira Loris Malaguzzi, da pedagogia de Reggio Emilia, o ambiente é o terceiro educador. E um educador sensível sabe quando é hora de falar — e quando é hora de silenciar, para que o novo possa surgir.
🌿 O educador que escuta o silêncio
Nem sempre é fácil, para o adulto, lidar com o silêncio da criança. Ele pode parecer desconfortável. Pode soar como desatenção, como timidez, como falta de interesse. Mas o silêncio infantil precisa ser escutado com os olhos, com o corpo, com a alma.
Adriana Friedmann, ao tratar da escuta sensível das infâncias, nos lembra que a criança se expressa por muitas vias — e o silêncio pode ser uma delas. Escutar o silêncio da criança é perceber o que se move no seu olhar, no seu gesto, na maneira como toca um objeto ou se aproxima de um canto da sala.
O educador que escuta o silêncio não apressa, não interrompe, não exige explicações imediatas. Ele sabe que há pensamento em curso, mesmo que ele não seja verbalizado. Ele sustenta o espaço da invenção, sem colonizá-lo.
📖 Autoria e silêncio: a criança como narradora de si
Quando a criança brinca sozinha, em silêncio, muitas vezes está criando uma narrativa interior. Ela fala consigo mesma. Cria enredos. Transforma objetos em personagens. Imagina cenários. Vive mundos que só ela vê.
Isso é autoria. E essa autoria só é possível quando o adulto não invade o campo simbólico da criança com interpretações apressadas ou propostas excessivas.
A pesquisadora Adriana Friedmann afirma que a criança é autora de seus percursos imaginativos. E o silêncio é muitas vezes o fio invisível dessa autoria. A escola precisa permitir que essas narrativas interiores respirem, que tenham espaço para existir antes de serem mostradas, se a criança quiser.
Documentar esses momentos — não com a pressa de expor, mas com o cuidado de preservar — é uma forma de dizer: “Eu vejo a tua invenção, mesmo que silenciosa.”
🎠 Brincar em silêncio: a escuta do mundo interior
Muitas vezes, associamos brincar a barulho, agitação, movimento. E, de fato, o brincar pode ser tudo isso. Mas há também o brincar silencioso — aquele que acontece em um canto da sala, com bonecos, blocos, folhas ou panos, em que a criança mergulha em um universo próprio, profundamente habitado.
Esse brincar não precisa de plateia. Ele precisa de tempo, espaço e respeito. Precisa que o adulto não interrompa com perguntas como “o que você está fazendo?” ou “isso é para fazer o quê?”. Em vez disso, o professor pode sentar-se perto, em silêncio também, compartilhando a presença e sustentando a confiança.
Nesse silêncio compartilhado, acontece o encontro profundo. A criança sente-se vista, mesmo sem falar. E o educador aprende a escutar com o corpo.
🌻 O silêncio na roda: presença que sustenta o coletivo
O silêncio não é apenas individual. Ele também pode ser vivido em grupo. Nas rodas de conversa, de histórias ou de escuta musical, há momentos em que o silêncio se instala como um manto. Não é constrangimento: é reverência.
É preciso ensinar as crianças que o silêncio não é castigo, mas um tipo de presença. E isso só se aprende se o silêncio for vivido com afeto. Compreendido como tempo de espera, de escuta, de contemplação.
Em uma roda em que todos escutam uma história com olhos atentos e corpos repousados, há uma qualidade de silêncio que nutre a palavra e fortalece o vínculo. É o silêncio que prepara a escuta verdadeira.
🎵 Silêncios que dançam: arte, música e contemplação
A arte e a música são caminhos para se viver o silêncio com beleza. Escutar uma melodia suave, observar uma imagem, acompanhar o voo de uma borboleta… tudo isso ensina à criança o valor da contemplação.
O silêncio é também pausa entre as notas, entre os versos, entre as cores. O educador pode cultivar isso por meio de experiências artísticas que não exijam fala imediata, mas que convoquem outros modos de presença.
Como nos lembra Lygia Bojunga, a infância é tempo de descobrir o mundo com todos os sentidos. E o silêncio é um dos sentidos mais potentes — porque nos põe em contato com o invisível.
🎶 A Música como Linguagem da Infância
Aprender música na infância não é apenas adquirir técnica ou reconhecer notas — é abrir escuta, corpo e alma para um mundo sensível de ritmos, melodias, silêncios e afetos. A música é uma das linguagens primeiras da criança: ela canta antes de falar, balança antes de caminhar, percebe o som antes de entender o sentido.
A musicalidade infantil é espontânea, intuitiva, pulsante. Está no balbucio, na batida de colher no prato, nas cantigas inventadas durante o brincar. Por isso, oferecer experiências musicais na educação infantil é valorizar esse saber que já habita a criança, ampliando sua expressão, escuta e imaginação.
🌱 Por que aprender música importa?
- Fortalece a escuta e a atenção plena:
A música ensina a ouvir — a si, ao outro, ao ambiente. Desenvolve escuta refinada, concentração e presença. - Desenvolve o corpo e a linguagem:
Ritmo, coordenação, expressão vocal, movimento. Tudo se entrelaça quando a música está presente. - Favorece vínculos e pertencimento:
Cantar em roda, tocar juntos, partilhar o silêncio e o som cria laços, convoca ao coletivo, fortalece a convivência. - Apoia o desenvolvimento cognitivo e emocional:
Estudos mostram que a música contribui para a memória, a criatividade, o raciocínio lógico, além de ser caminho potente para a elaboração de emoções. - Nutre o imaginário e a sensibilidade estética:
Ao ouvir uma melodia, a criança sonha. Ao cantar, ela se conta. Ao tocar um instrumento, experimenta autoria.
🌻 A musicalidade como direito cultural
A música não deve ser vista como “complemento” no currículo — ela é direito cultural das infâncias. Assim como desenhar, brincar ou dançar, fazer música é um modo legítimo de se expressar no mundo. Como nos ensina Lygia Hortélio, as cantigas populares são patrimônio da infância, carregam memórias coletivas, ritmos ancestrais e afeto compartilhado. Quando a escola oferece à criança o contato com instrumentos, canções, silêncios e sons da natureza, está cultivando escuta, sensibilidade, pertencimento e encantamento.
🌾 Semear silêncio para colher imaginação
O silêncio como ninho da imaginação não é ausência de vida — é gestação de mundos. É ali, na pausa entre uma pergunta e uma resposta, que a criança inventa o que ainda não foi dito. É ali, na sombra de uma árvore ou no canto da sala, que ela descobre o que deseja narrar.
A escola que respeita o silêncio da infância é uma escola que acredita na potência do invisível. Que compreende que nem tudo precisa ser mostrado, explicado, mensurado. Há saberes que florescem no tempo da espera.
O educador que silencia com a criança aprende a escutar de verdade. Aprende que ensinar também é sustentar o espaço de criação. Que há mais sabedoria em não interromper do que em ensinar. E que, muitas vezes, a imaginação precisa de silêncio para poder gritar.