Personagens de Papel: Imaginação, Reconhecimento e Recriação no Brincar Infantil


A potência de recriar com as próprias mãos

Na infância, personagens são mais do que figuras fictícias: são presenças, companheiros de brincadeiras, fontes de coragem e inspiração. Quando uma criança se encanta com um personagem, ela não apenas o assiste ou ouve sobre ele — ela o incorpora, o reimagina, o transforma em parte do seu próprio repertório de mundo. Nesse contexto, convidar crianças a construírem personagens com papéis diversos é mais do que propor uma atividade manual: é abrir um espaço de criação, autoria, protagonismo e encantamento.

Ao trabalhar com materiais simples como papéis coloridos, jornais, revistas, papéis reciclados, papelão e outros suportes acessíveis, abrimos espaço para que a imaginação da criança tome forma e se revele. Essa proposta, que une artes visuais, narrativa, corpo e escuta, promove um encontro entre o que a criança já conhece — os personagens do seu cotidiano simbólico — e aquilo que ela pode inventar, transformar ou ressignificar. Além disso, permite ampliar repertórios, dialogar com diversidade e construir caminhos de aprendizagem sensível e potente.

Nesse artigo, compartilhamos o valor formativo dessa prática e descrevemos algumas situações possíveis de vivência com as crianças pequenas, sempre respeitando seus tempos, suas narrativas e seus modos próprios de expressão.

A infância como território simbólico

As crianças pequenas habitam o mundo de modo criativo e singular. Elas conversam com árvores, cuidam de pedras, dançam com vento. Seu pensamento é simbólico, aberto e relacional. Nesse contexto, os personagens conhecidos por elas — como animais falantes, heróis, heroínas, princesas, monstros e figuras de histórias infantis — não são apenas figuras externas: eles fazem parte de um tecido interno que costura afetos, fantasias, referências culturais e modos de compreender o mundo.

Dar forma a esses personagens com as próprias mãos é um ato de apropriação poética. A criança não consome o personagem: ela o transforma. Cria novas versões, decide cores e formas, adiciona detalhes, muda histórias. Essa liberdade criativa é essencial para o desenvolvimento da autonomia, da linguagem simbólica, da capacidade narrativa e da autoria.

Ao incluir papéis diversos como suporte para essas criações, o educador também ensina que o brincar não precisa de recursos sofisticados ou estereotipados, mas pode emergir de materiais simples, acessíveis e sustentáveis — o que também contribui para práticas pedagógicas mais ecológicas, éticas e criativas.

Nutrir esteticamente o tempo da imaginação

Essas estratégias não são etapas obrigatórias ou sequenciais. São sementes que podem ser lançadas com afeto e sensibilidade, de acordo com o contexto do grupo, o momento da turma, o tempo das infâncias.

O essencial é reconhecer que criar personagens é muito mais do que produzir algo. É mergulhar num universo simbólico, imaginar-se diferente, experimentar papéis (no duplo sentido da palavra) e reorganizar o mundo com as próprias mãos.

Por isso, nutrir o imaginário infantil é compreender que quanto maior o repertório imagético, maiores serão as possibilidades de combinações.

Obras de arte que sopram ideias: inspiração para criar personagens

O contato com obras artísticas — pinturas, esculturas, instalações, músicas, performances — amplia o olhar e afina a sensibilidade das crianças. Quando elas se deparam com criações poéticas e simbólicas, aprendem a ver o mundo de outros modos, a estranhar o comum e a acolher o inusitado.

O educador pode oferecer às crianças o encontro com obras que inspirem formas, cores, texturas, seres imaginários e narrativas visuais.

A seguir, sugerimos algumas obras e artistas que dialogam com o imaginário infantil e podem ser trabalhadas com crianças pequenas de forma sensível:

🎨 1. Tarsila do Amaral – “Abaporu”, “Sol Poente”, “A Lua”

As figuras inventadas por Tarsila, seus corpos alongados, seus pés enormes, seus mundos coloridos e desconcertantes são um convite à invenção de personagens. “Abaporu”, por exemplo, parece ser uma criatura vinda de um planeta novo — ou da própria imaginação.

💡 Proposta: após a apreciação, o educador pode perguntar:
— Quem você acha que é esse ser? Como ele se movimenta? O que come?
E depois propor:
— Vamos criar personagens inspirados nas formas da Tarsila?

🎨 2. Joan Miró – composições com formas oníricas e abstratas

As obras de Miró encantam as crianças com suas linhas livres, pontos, olhos flutuantes e formas que parecem sair de sonhos. Seu universo é cheio de seres não identificáveis que sugerem personagens por vir.

💡 Proposta: observar suas obras projetadas na parede ou impressas e perguntar:
— Você consegue ver um personagem aqui dentro?
— Que nome daria para esse ser?
Depois, criar personagens com papel inspirados nas formas sugeridas.

🎨 3. Yayoi Kusama – mundos de bolinhas infinitas

A artista japonesa cria instalações que parecem universos paralelos, povoados por pontos, luzes e reflexos. Seu trabalho fala de repetição, obsessão, infinitude — tudo com uma poética visual vibrante.

💡 Proposta: após observar fotos de suas salas de espelhos ou esculturas, o educador pode perguntar:
— E se os personagens vivessem dentro dessa sala? Como seriam eles?

🎨 4. Ernesto Neto – esculturas sensoriais e orgânicas

As obras de Ernesto Neto parecem criaturas gigantes, feitas de tecidos que pendem, ondulam, abrem caminhos. São formas que se relacionam com o corpo, o espaço e o sentir.

💡 Proposta: conversar com as crianças sobre como seriam personagens que vivem dentro dessas estruturas. Criar com papel personagens “molengas”, com tentáculos, perfumes ou texturas diferentes.

🎨 5. Hilma af Klint – arte espiritual e geométrica

A artista sueca produziu obras abstratas cheias de símbolos, espirais, formas geométricas e cores suaves, como se desenhasse mapas de mundos invisíveis. Seu trabalho convida à introspecção e ao mistério.

💡 Proposta: usar suas obras para inspirar personagens que vêm de “outros planos” — seres mágicos, guias, criaturas com formas simbólicas.

🎨 6. Rosana Paulino – corpos, memórias e identidades negras

Rosana Paulino trabalha com a reconfiguração do corpo negro na arte, usando costuras, desenhos, bordados, imagens de arquivo. Mesmo com sua complexidade conceitual, muitas de suas obras provocam crianças a pensarem em personagens que guardam histórias, cicatrizes, forças internas.

💡 Proposta: propor personagens que têm mapas no corpo, que carregam histórias dos ancestrais, que bordam caminhos.

🎭 7. Teatro de Bonecos do grupo Giramundo

Os bonecos usados no teatro de forma animada também inspiram personagens únicos — com proporções inusitadas, formas exageradas, expressões simbólicas. O Giramundo (MG) tem personagens baseados no folclore, em lendas e na cultura popular brasileira.

💡 Proposta: assistir a trechos de apresentações (ou fotos) e perguntar:
— Como são esses corpos? Como você criaria um boneco seu com papel?

🖼️ 8. Arte popular brasileira – carrancas, brinquedos de barro

Personagens do imaginário popular, feitos por mãos de artesãos e artesãs do Brasil, podem inspirar criações muito singulares. Carrancas do rio São Francisco, bonecas de cerâmica do Vale do Jequitinhonha, brinquedos de lata ou madeira do sertão…

💡 Proposta: explorar imagens e histórias desses objetos/personagens, criando versões de papel que dialoguem com nossas raízes culturais.

Propor arte para provocar, não para imitar

Essas obras não devem ser apresentadas como modelos a serem copiados, mas como provocações visuais e simbólicas. Elas funcionam como janelas que se abrem para outros mundos — e a criança, ao atravessar essas janelas com a imaginação, encontra seu próprio modo de habitar a criação.

O educador pode organizar pequenas “estações de inspiração” com imagens, áudios ou vídeos dessas obras antes da construção dos personagens com papel. O importante é criar um ambiente de encantamento e liberdade, onde as referências artísticas sirvam de alimento, não de limite.

Jogos simbólicos com personagens: quando a imaginação brinca de ser

Proposta: Quem mora nas histórias que você conhece?

Uma forma sensível de começar essa proposta é partir do que a criança já conhece. Em roda, o educador pode perguntar:

— Quem são os personagens que moram nas histórias que vocês mais gostam?
— Como eles se parecem? Como falam? O que fazem?
— Que personagens vocês inventariam, se pudessem?

A partir dessas perguntas, abre-se uma rica conversa onde as crianças nomeiam personagens conhecidos (Chapeuzinho Vermelho, Saci, Peppa Pig, Homem-Aranha, Iemanjá, entre outros), mesclando referências da cultura midiática, tradicional e familiar. Não há hierarquia de valor, apenas escuta aberta.

A próxima etapa é o convite: vamos construir nossos personagens com papel?

Nessa proposta, o educador organiza diferentes tipos de papel sobre as mesas ou no chão: color set, papel pardo, jornal, revista, papel vegetal, papel kraft, papel manteiga, papel celofane, retalhos, papelão, etc. Também pode oferecer tesouras sem ponta, cola, fita adesiva, lápis de cor, giz e canetinhas.

A criança escolhe com qual personagem deseja trabalhar — pode ser um conhecido ou um inventado. A construção não precisa seguir padrões estéticos adultos: o importante é que ela seja significativa para quem cria. Um leão pode ter corpo roxo de revista e juba de jornal, um dragão pode ser um tubo de papelão com asas de papel celofane. Ao final, cada criança pode apresentar seu personagem para o grupo, contando sua história, seus poderes, seus gostos.

Essa vivência fortalece a oralidade, a escuta, o protagonismo e a criatividade, e pode se desdobrar em outras linguagens, como teatro de papel, escrita coletiva ou contação de histórias.

Depois que os personagens são criados com papéis diversos, os jogos simbólicos funcionam como pontes entre o que foi imaginado e o que pode ser vivido. São momentos de invenção coletiva onde as crianças experimentam diferentes papéis, testam vozes, sentimentos, gestos e narrativas. O “faz de conta” é mais do que uma brincadeira: é uma forma da infância elaborar o mundo.

A seguir, apresentamos sugestões de jogos simbólicos com personagens, que podem ser adaptados conforme o grupo, o espaço e os materiais disponíveis:

🎭 1. “Onde moram nossos personagens?”

Cada criança, ou pequeno grupo, escolhe um espaço da sala, do pátio ou do quintal para ser o “lar” do seu personagem. Pode ser uma caverna de panos, um ninho de almofadas, uma casinha de papelão ou uma toca sob a mesa.

💡 A proposta:
— Como é a casa do seu personagem?
— O que ele faz quando acorda?
— Quem são seus vizinhos?
Depois, o educador pode propor visitas entre os lares, como em uma vila encantada. Isso favorece o jogo cooperativo e a troca entre os mundos imaginários.

🎤 2. “Encontro de personagens”

Um círculo se forma. No centro, dois personagens criados pelas crianças se encontram. O educador propõe:

— Vocês se conhecem?
— Que história une vocês?
— O que vocês diriam um ao outro?

As crianças representam com gestos, vozes e falas espontâneas. Os encontros podem ser inusitados: um dragão e uma fada, um peixe e uma árvore, uma heroína e um pirata.

Esse jogo desenvolve linguagem oral, empatia e capacidade narrativa.

🧳 3. “Missão secreta dos personagens”

O educador entrega a cada personagem uma missão simbólica, escrita em cartões ou revelada oralmente:

  • “Você precisa encontrar a flor mágica escondida no jardim.”
  • “Seu personagem tem que ensinar os outros a voar.”
  • “Leve uma mensagem para o guardião do tempo.”

As crianças encarnam seus personagens e saem em missão, individualmente ou em grupos. Podem criar objetos mágicos, resolver charadas, atravessar obstáculos simbólicos. Ao final, compartilham o que viveram.

💡 Importante: deixar a missão em aberto, para que a criança invente o percurso. O caminho é mais importante que o resultado.

🧚 4. “Varal de histórias”

Os personagens criados são pendurados em um varal com prendedores. O educador puxa um ou mais personagens e inventa o início de uma história:
— “Era uma vez um personagem feito de jornal que morava em um castelo de papel celofane…”

Cada criança continua a história, falando do seu personagem ou criando novas situações. Pode-se usar objetos de papel como cenário.

Esse jogo trabalha a escuta ativa, a coautoria e o fluxo narrativo.

🐾 5. “Desfile de personagens”

Em roda ou em passarela improvisada com tecidos, cada criança apresenta seu personagem:
— Quem é?
— Como anda?
— Que som faz?
— Como se sente hoje?

Pode ser com música instrumental ao fundo, criando um clima de encantamento. As crianças podem também batizar seus personagens nesse momento.

O desfile é uma celebração da criação coletiva, e pode ser documentado com fotos, vídeos ou desenhos.

🗺️ 6. “Mapa dos mundos imaginários”

Coletivamente, o grupo constrói um grande mapa em papel kraft ou cartolina, desenhando os territórios onde vivem seus personagens: florestas de algodão, cidades voadoras, rios de tinta, desertos com pirulitos.

Depois, os personagens podem ser colocados sobre o mapa, e as crianças narram suas rotas, encontros e aventuras.

Esse jogo integra artes visuais, oralidade e cooperação, e pode se desdobrar em um mural coletivo ou livro de aventuras.

O jogo simbólico como criação de mundo

Essas propostas não têm regras rígidas. O mais importante é que o educador atue como escutador e provocador poético, oferecendo tempo, espaço e liberdade para que a criança construa, brinque, se movimente e fabule com seu personagem.

Como diz Walter Benjamin, “A criança não brinca de ter um mundo — ela brinca com o mundo.”  E quando ela brinca com personagens criados com suas próprias mãos, ela se torna autora do mundo que quer habitar.

Personagens como espelho e janela

Trabalhar com personagens conhecidos pelas crianças é também uma oportunidade de refletir sobre representatividade, diversidade e inclusão.

Quem são os personagens que as crianças veem e ouvem? Quais corpos, cores, formas de viver estão representados? Quais são invisibilizados?

Ao abrir espaço para a criação livre com papéis diversos, o educador pode trazer provocação e repertório: apresentar personagens negros, indígenas, com deficiência, personagens de diferentes culturas, modos de vida e contextos. Pode propor releituras: e se a princesa fosse cientista? E se o super-herói usasse cadeira de rodas? E se o monstro fosse vegetariano?

Essas criações, feitas com materiais simples e sentidos profundos, ajudam a criança a compreender que o mundo é múltiplo — e que ela mesma pode criar novos mundos com seus gestos, recortes e colagens.

A escuta como fio condutor

Mais do que a perfeição da forma, importa a escuta das intenções, dos afetos e das narrativas que emergem durante o processo. O educador que observa, pergunta, acolhe e documenta o que vê e ouve está valorizando a experiência como um processo de aprendizagem integral.

Cada personagem construído carrega fragmentos da criança que o criou: suas referências, emoções, desejos, modos de imaginar. Registrar esse processo — por meio de fotos, falas transcritas, desenhos — contribui para a construção de uma documentação pedagógica viva e sensível.

A proposta de criar personagens com papéis diversos é extremamente versátil e adaptável, podendo ser aplicada com crianças de 3 a 8 anos, com variações na abordagem conforme a faixa etária. Aqui vai um detalhamento sensível por idades, considerando o desenvolvimento infantil e as possibilidades expressivas:

👶 3 a 4 anos – Primeiras criações com intenção simbólica

  • Como propor: nessa faixa etária, o foco está na exploração sensorial e livre dos materiais. As crianças pequenas ainda estão desenvolvendo coordenação motora e pensamento simbólico, por isso, a construção de personagens pode surgir de formas abstratas que depois ganham significado conforme a criança nomeia e interpreta.
  • Ações possíveis:
    • Rasgar, colar, amassar, sobrepor papéis
    • Criar “amigos de papel” com olhos colados, pedaços de lã, adesivos
    • Fazer personagens simples com auxílio do adulto (rolo de papel como corpo, papel de seda como roupa)
  • Importante: respeitar a estética da criança e evitar moldes prontos. Aqui, o processo importa muito mais que o resultado.

🧒 5 a 6 anos – Imaginação encarnada em personagens únicos

  • Como propor: as crianças já começam a criar narrativas estruturadas, e os personagens podem ter nome, personalidade e função. Essa é uma idade ideal para propor jogos simbólicos, criações em grupo, rodas de histórias e vínculos afetivos com os personagens criados.
  • Ações possíveis:
    • Construção livre ou temática (monstros, heróis, figuras do folclore)
    • Integração com histórias lidas, imagens projetadas, músicas
    • Criação de vozes, movimentos e casas para os personagens
    • Pequenas apresentações ou dramatizações
  • Importante: estimular a autoria e a diversidade das criações. Cada personagem pode ter sua história registrada ou contada oralmente.

👧🏽 7 a 8 anos – Criação com intenção estética e narrativa

  • Como propor: com mais domínio da coordenação motora e da linguagem escrita e oral, as crianças maiores podem criar personagens com elaborações complexas, incluindo acessórios, mundos fictícios, relações entre personagens, mapas e missões.
  • Ações possíveis:
    • Criação de “fichas de personagem” com nome, idade, origem
    • Histórias coletivas escritas ou encenadas com os personagens
    • Uso de papel para criar figurinos, fantoches articuláveis, máscaras
    • Projetos maiores como “livro dos personagens da turma” ou “exposição interativa”
  • Importante: abrir espaço para projetos continuados, onde as crianças possam aprofundar e revisitar suas criações ao longo do tempo.

Considerações finais: quando o papel vira presença

A construção de personagens com papéis diversos é uma prática acessível, potente e cheia de possibilidades educativas. Ela convoca as crianças a criar com liberdade, narra com as mãos, transforma materiais simples em experiências significativas.

Ao propor esse tipo de vivência, o educador promove não só o desenvolvimento da linguagem, da imaginação e da motricidade fina, mas também o fortalecimento da identidade, da autoria e da sensibilidade coletiva.

Num mundo que muitas vezes oferece personagens prontos e embalados, dar à criança a oportunidade de criar os seus, com as cores que quiser, com os traços que imaginar, é uma escolha ética e poética. É dizer: você pode criar, pode inventar, pode ser o que quiser.

Afinal, como diz Manoel de Barros,  “É preciso transver o mundo.” E as crianças sabem transver.
Basta oferecer a escuta e a liberdade de expressão.

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