Há uma delicadeza primeira que inaugura toda relação com a infância: a presença. Antes do brinquedo, antes das palavras, antes mesmo da organização de propostas pedagógicas, está o gesto de estar inteiro diante da criança. O olhar que não se apressa, a escuta que não interrompe, o corpo que se oferece como companhia verdadeira.
O brincar começa no encontro
Winnicott, pediatra e psicanalista, nos lembra que a criança só consegue brincar quando se sente segura na presença de um outro que a sustenta. Não se trata de vigiar, mas de oferecer continência emocional, de estar atento sem sufocar, de abrir espaço para o inesperado.
A presença atenta não significa direcionar, mas acompanhar. É como escreve Madalena Freire ao falar do educador que observa e registra: a escuta é o primeiro cuidado. Só quem escuta de verdade pode compreender a potência do brincar e do aprender.
Assim, quando nos colocamos de corpo inteiro diante da infância, oferecemos a condição para que o brincar floresça como expressão livre e autoral.
O ambiente como extensão da presença
Maria Montessori já dizia que o ambiente é educador. Não basta a presença do adulto se o espaço não convida à exploração, à autonomia e ao encantamento. O ambiente é o terceiro educador, como afirmam também os pedagogos de Reggio Emilia: é ele quem fala silenciosamente à criança, oferecendo materiais, cores, luzes e texturas que despertam curiosidade.
Estar presente, portanto, é também cuidar do espaço. É selecionar materiais simples e ricos — madeiras, tecidos, argila, água, folhas, pedras e outros de largo alcance. É garantir lugares de silêncio e também de movimento. É pensar na estética, não como enfeite, mas como linguagem sensível que comunica: “este lugar é digno da sua infância”.
Leia Tiriba nos lembra que a natureza é parte fundamental desse ambiente enriquecido. A presença se expande quando nos sentamos na grama com as crianças, quando esperamos com elas o vento que move os panos, quando nos demoramos diante do caminho das formigas.
O tempo como condição de presença
Na vida contemporânea, o tempo é fragmentado, corrido, escasso. Mas o tempo da infância pede outra cadência. Estar presente é também aprender a desacelerar. Não se trata de preencher cada minuto com propostas, mas de abrir vazios férteis, onde o brincar pode brotar sem pressa.
Walter Benjamin, ao refletir sobre a infância, dizia que o brincar recria o mundo em miniatura. Mas para que isso aconteça, é preciso tempo — tempo de insistir num gesto, de repetir, de observar com atenção um detalhe que para o adulto parece insignificante.
O educador que se faz presença respeita esse ritmo, valoriza o gesto lento, o olhar demorado, o silêncio que antecede uma fala.
Estar presente é também brincar
Muitos educadores se perguntam: qual é o meu lugar no brincar? Seria apenas observar? Seria entrar no jogo?
A resposta está na qualidade da presença. Há momentos em que a criança convida o adulto a participar — a segurar a corda, a servir um “bolo de areia”, a correr junto. Nesses momentos, o adulto se torna parceiro de brincadeira, sem roubar a autoria da criança. Outras vezes, o mais importante é observar, legitimar o brincar com o olhar afetuoso e a disponibilidade silenciosa.
A presença que brinca não é invasiva, é delicada. Ela se oferece, mas não se impõe. É como um sopro que impulsiona a imaginação sem apagá-la.
Propostas para cultivar presença poética
- Rodas de chegada: ao iniciar o dia, criar um momento de acolhimento em que cada criança seja olhada e saudada pelo nome. É um ritual de presença.
- Ambientes preparados: oferecer cestos de tesouros, materiais da natureza, tecidos, instrumentos musicais simples. O ambiente comunica interesse e cuidado.
- Momentos de observação silenciosa: estar junto sem intervir, apenas observando o que nasce do brincar. Registrar em diário de bordo ajuda a aprofundar esse olhar.
- Ritmos do dia: organizar tempos mais tranquilos — ouvir música suave, observar o céu, sentir o vento. Esses respiros favorecem atenção e vínculo.
- Convite ao adulto se encantar: educadores e familiares também precisam se permitir brincar, explorar materiais, ouvir histórias. Só assim a presença se torna autêntica.
A ética da presença
Estar presente é mais que uma técnica: é uma postura ética. É afirmar que a criança merece ser olhada de verdade, e não apenas administrada no cotidiano. É reconhecer que cada gesto, por menor que seja, tem valor, e nessa convivência que se constroem confiança, liberdade e autonomia. A presença atenta é o solo sobre o qual florescem práticas democráticas e sensíveis na educação infantil.
O primeiro brincar
Quando dizemos que estar presente é o primeiro brincar, estamos lembrando que nenhum brinquedo, por mais sofisticado que seja, substitui o calor de uma presença humana inteira. O brincar é, antes de tudo, relação: com o outro, com o ambiente, com o tempo, com a vida.
A presença poética do educador — feita de olhar, escuta, cuidado e encantamento — é a primeira condição para que a criança invente seus mundos, experimente sua liberdade e exercite sua autoria.
Estar presente é, enfim, o gesto inaugural de toda pedagogia sensível e democrática. É o primeiro brinquedo, aquele que nunca se quebra, que não se perde e que acompanha a criança para sempre na memória de suas infâncias.
O brincar corporal dos bebês
Nos primeiros anos, o brincar não se separa do corpo:
- O bebê brinca quando agita as mãos diante do próprio rosto.
- Brinca quando descobre os pés e tenta alcançá-los.
- Brinca quando rola para um lado e para o outro, transformando o chão em território de conquista.
- Brinca quando repete sons, balbucia, experimenta a musicalidade da voz.
Cada gesto é pesquisa, cada repetição é ensaio de autoria. O brincar corporal é ato de descoberta: “eu existo, eu posso, eu causo efeito no mundo”.
A presença humana como condição do brincar
O bebê não brinca sozinho. Ele precisa da presença de um outro que legitime e dê sentido a essas descobertas.
- Quando a mãe, o pai ou a educadora sorriem diante de um balbucio, o bebê entende que sua voz comunica.
- Quando alguém estende os braços para acompanhá-lo nos primeiros passos, ele sente segurança para arriscar.
- Quando uma educadora se deita no chão ao lado do bebê, compartilhando a visão do teto, nasce uma cumplicidade que fortalece a relação.
Donald Winnicott dizia que o brincar só é possível quando há um “ambiente suficientemente bom”, isto é, uma presença que acolhe, sustenta e dá segurança. O brincar corporal dos bebês depende dessa continência afetiva: alguém que esteja inteiro, disponível, atento.
Brincadeiras corporais com bebês
- O colo e o embalo: balançar suavemente, cantar, acompanhar o ritmo do corpo do bebê. O movimento é jogo de afeto.
- Jogos de espelho: olhar-se no espelho junto ao bebê, repetir gestos, rir das expressões. Ele descobre a si mesmo e o outro.
- Esconde-achou: cobrir o rosto com um pano e reaparecer; o bebê experimenta a alegria da surpresa e do vínculo.
- Brincar de rolar e deitar no chão: compartilhar o espaço horizontal, permitindo que o bebê explore livremente com o corpo.
- Cantigas de corpo: jogos de bater palminhas, brincar com os pés, rimas acompanhadas de toques suaves.
Essas brincadeiras não são apenas divertimento: são modos de desenvolver coordenação, percepção, linguagem e, sobretudo, vínculo.
A presença como poesia do cuidado
Mais do que propor atividades, o essencial é que o adulto esteja presente de verdade. A criança percebe quando o olhar está distante, quando a atenção é dividida. A presença humana é o brinquedo que dá segurança, coragem e alegria para que o bebê explore o mundo.
A pesquisadora Leia Tiriba nos lembra que o cuidado com bebês envolve um gesto de estar junto com o corpo todo, atento às sutilezas da respiração, dos movimentos, dos olhares. Esse estar junto é um brincar em si: uma dança relacional entre o corpo da criança e o corpo do adulto.
Brincar corporalmente com bebês é, portanto, mais do que estimular: é compartilhar. É transformar o corpo em ponte de afeto, presença em brinquedo, e o cotidiano em experiência poética.
O brincar poético dos 2 aos 5 anos
Entre os 2 e os 5 anos, a criança descobre que brincar é fazer de conta. É transformar o cotidiano em metáfora. Uma caixa de papelão vira casa, navio ou foguete. Um galho pode ser cavalo ou varinha mágica. O corpo se veste de personagens: ora mãe, ora bebê, ora super-herói, ora cozinheira.
É nesse tempo que o brincar se torna narrativa: a criança inventa histórias, cria enredos, organiza sequências que refletem seu mundo interno e suas observações da vida.
Como escreve Walter Benjamin, a infância é mestra em recriar o mundo com o que sobra dos adultos. Caixas, tampas, tecidos e objetos simples se tornam instrumentos de poesia. É um brincar metamórfico, que não se prende a funções pré-estabelecidas.
O corpo como poesia
O corpo entre 2 e 5 anos já corre, salta, dança, se arrasta, escala. A criança experimenta a gravidade, desafia limites, sente prazer em dominar novos movimentos. Esse corpo não apenas se exercita, mas canta o brincar:
- O pulo na poça é verso de liberdade.
- O giro até cair no chão é rima de alegria.
- O esconde-esconde é metáfora da presença e da ausência.
Cada gesto corporal é escrita poética no espaço.
A imaginação como autora
A imaginação floresce como autora nesse período. Inspirada por Vygotsky, sabemos que a criança, ao brincar de faz de conta, reorganiza a realidade e antecipa papéis sociais. Brincar de casinha, de mercado, de escola ou de médico não é apenas imitação, mas elaboração criativa de experiências vividas e sentidas.
Essa imaginação é também poética: ela dá novas formas ao real, colore o cotidiano com fantasia e multiplica as possibilidades de ser.
O ambiente como palco do brincar poético
O espaço preparado é convite para que a poesia da infância se manifeste. Tecidos, blocos de madeira, bonecos, elementos da natureza, papéis e tintas: cada material é uma palavra que a criança transforma em verso.
Inspirados em Loris Malaguzzi, de Reggio Emilia, podemos pensar que o ambiente é o “terceiro educador”, um companheiro silencioso que fala através das cores, das texturas, da luz. Um ambiente esteticamente cuidado, mas aberto, possibilita que a criança escreva sua própria poesia lúdica.
O brincar coletivo: poesia em coro
Dos 2 aos 5 anos, o brincar também se torna mais coletivo. As crianças inventam juntas, negociam papéis, constroem regras. É nesse convívio que aprendem a escutar, a esperar, a combinar.
O jogo simbólico compartilhado é como um poema coral: cada voz acrescenta um verso, cada gesto abre novas rimas. É nesse espaço que nascem as primeiras experiências democráticas: decidir juntos, acolher diferenças, reinventar caminhos.
Presença adulta como guardiã do poético
Para que esse brincar poético aconteça, é preciso a presença atenta do adulto. Não para controlar, mas para sustentar o espaço e proteger a liberdade criadora. Madalena Freire nos lembra que observar e registrar o brincar é também um ato poético: é valorizar a infância como obra de arte em movimento.
Quando o educador se permite encantar com a poesia do brincar infantil, ele legitima a autoria das crianças e fortalece seu direito de imaginar.
Exemplo de práticas poéticas para 2 a 5 anos
- Cabanas de tecido: espaços de esconderijo, leitura, imaginação.
- Cozinhas de terra e folhas: brincar de preparar alimentos inventados, experimentar cheiros e texturas.
- Construções coletivas: blocos, caixas, pedaços de madeira para levantar cidades efêmeras.
- Dramatizações espontâneas: oferecer fantasias, tecidos e objetos para que inventem personagens.
- Passeios poéticos: explorar a escola ou o entorno transformando cada lugar em cenário de histórias.
Entre os 2 e 5 anos, o brincar é poesia encarnada. É corpo que dança, voz que inventa, imaginação que floresce. É a infância escrevendo versos com o simples e o cotidiano.